O programa do Chega, que parece saído da pena de um fisiocrata de finais do século XVIII, revisto depois pela censura disponível e atenta de um aluno da primária do início do Estado Novo, é uma peça que merece ser lida. Esta mistura de convicções perigosas com absurdos e generalidades vazias reza assim -- vejamos alguns excertos:

- “O Estado deverá funcionar como qualquer empresa que produz serviços, neste caso serviços de soberania. O facto de possuir o monopólio deste tipo de serviços não implica que não deva reger-se pelos mesmos critérios de sustentabilidade e boa gestão de uma qualquer empresa privada, incluindo os vínculos que com ela estabelecem os seus trabalhadores.” Portanto, contratos de trabalho individual, a prazo se possível, para todos os funcionários públicos, e fecho imediato dos hospitais públicos e da CP, bem como de todas as demais empresas públicas que não dão lucro. Para começo de conversa, não está mal.

- “O CHEGA defende intransigentemente a aplicação de pena de prisão perpétua para a criminalidade mais grave e violenta, recusando qualquer participação numa coligação parlamentar ou de governo que inviabilize a consagração jurídico-legal desta solução.” A prisão perpétua, que Portugal aboliu no século XIX, deve, portanto, regressar e já (mesmo tendo o Papa já se pronunciado contra ela e abolido a mesma no Vaticano) -- e o PSD só terá apoio parlamentar do Chega para um eventual Governo se o assegurar, está dito!

- “O CHEGA defende a criação, implementação e digitalização de uma base registal de natureza comunitária que permita compreender e identificar problemas de subsidiodependência, de natureza criminal ou comportamental e as dinâmicas internas específicas que originam diversos tipos de conflitualidade inter-humana.” “Base registal (sic) de natureza comunitária”? O que é isso? Bufos pagos pelo Estado a indicar que o senhor x recebe abono de família e jantou fora ontem? Ah, esse patife pobre, que foi comer à nossa conta!

- “O CHEGA defende (...) que as políticas em causa (imigração para Portugal) devem obedecer a critérios como a clareza, a objetividade, a quantificação e perspetivas de longo prazo que assegurem o consentimento consciente e explícito dos Portugueses, em especial da esmagadora maioria de indivíduos pertencentes a classes médias e a classes baixas, os verdadeiros agentes integradores da imigração que suportam, sempre que necessário, os encargos quotidianos do fenómeno. (...) Os portugueses da diáspora organizados em comunidades um pouco por todo o mundo constituem parte integrante da nação portuguesa e são um dos seus mais preciosos ativos. Tal implica uma muito particular atenção do CHEGA e justifica plenamente a proposta de criação de um conjunto de mecanismos e de medidas tendente a que essas comunidades possam participar (...) ativamente na vida política (...)” Aqui, é impossível não ver, entre outras coisas, a contradição -- portugueses pelo Mundo, fiquem por favor por aí, mas votem em nós! Imigrantes em Portugal, atenção que é preciso ter o “consentimento explícito e consciente” dos Portugueses para esse “fenómeno”.

- “O CHEGA dá prioridade à empresa familiar (...) sobre todas as outras formas de organização empresarial. A empresa familiar é a extensão natural da família, fator da sua coesão (...). O CHEGA reconhece também o papel importante das empresas de maior dimensão, incluindo as grandes sociedades anónimas, especialmente no domínio das economias de escala, da investigação e desenvolvimento, mas mantendo-se alerta para os riscos da sua impessoalidade e outros assuntos decorrentes da sua excessiva dimensão.” Atenção, grupos económicos, alerta! Vem aí a verdadeira bazuca, para destruir a vossa impessoalidade e outros assuntos decorrentes da excessiva dimensão, seja isso o que for! Bem bom é a pastorícia, em prática isolada, e a pequena mercearia, aberta das 6 às 23, com toda a família lá a trabalhar dia e noite - mas só se forem portugueses e não receberem subsídio, claro.

- “A corrupção tornou-se um problema nacional devido à importância que o socialismo vigente atribui ao Estado. A corrupção é mais frequente no setor público do que no setor privado porque os donos dos recursos -- os contribuintes -- não estão presentes junto de quem os gere para fiscalizar a sua utilização. Pela mesma razão, no âmbito do setor privado, a corrupção é mais frequente em grandes empresas do que em pequenas empresas. Promovendo, em primeiro lugar, as pequenas empresas, só em segundo lugar as grandes empresas e, em último lugar, o Estado, o CHEGA visa fomentar um clima económico e social avesso à corrupção. Nesta matéria, igualmente, no âmbito da reforma da justiça, o CHEGA defende o aumento significativo das penas de prisão para os crimes de corrupção e tráfico de influências, entre outros, bem como a criminalização do enriquecimento injustificado.” Portanto, mais uma vez, como sabemos, o Português é santo, ungido à nascença, incapaz de pecar. Mas depois, lá vêm as grandes empresas, o socialismo, o Estado, tudo fonte de tentação e pecado... Lidar com isso? Com penas mais longas de prisão -- aquilo que décadas de estudo demostraram que não condicionam o crime, especialmente o crime económico.

Parece anedótico, mas não é. Supostamente é isto o Chega, tivesse alguém dúvidas sobre isso.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

QOSHE - O que quer afinal o Chega? - Miguel Romão
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O que quer afinal o Chega?

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02.02.2024

O programa do Chega, que parece saído da pena de um fisiocrata de finais do século XVIII, revisto depois pela censura disponível e atenta de um aluno da primária do início do Estado Novo, é uma peça que merece ser lida. Esta mistura de convicções perigosas com absurdos e generalidades vazias reza assim -- vejamos alguns excertos:

- “O Estado deverá funcionar como qualquer empresa que produz serviços, neste caso serviços de soberania. O facto de possuir o monopólio deste tipo de serviços não implica que não deva reger-se pelos mesmos critérios de sustentabilidade e boa gestão de uma qualquer empresa privada, incluindo os vínculos que com ela estabelecem os seus trabalhadores.” Portanto, contratos de trabalho individual, a prazo se possível, para todos os funcionários públicos, e fecho imediato dos hospitais públicos e da CP, bem como de todas as demais empresas públicas que não dão lucro. Para começo de conversa, não está mal.

- “O CHEGA defende intransigentemente a aplicação de pena de prisão perpétua para a criminalidade mais grave e violenta, recusando qualquer participação numa coligação parlamentar ou de governo que inviabilize a consagração jurídico-legal desta solução.” A prisão perpétua, que Portugal aboliu no século XIX, deve, portanto, regressar e já (mesmo tendo o Papa já se pronunciado contra ela e abolido a........

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