Os últimos anos foram um tempo de demasiada imobilidade e de algum descentramento das necessidades fundamentais dos diferentes sistemas que compõem os serviços públicos da justiça e das legítimas expetativas dos seus utilizadores. E passou-se de um momento de escassez e quase impossibilidade de investimento nos primeiros anos pós-2015 para uma voracidade comunicacional, de consumo de recursos no contexto PRR, que arrisca a deixar quase tudo na mesma. Até porque a realidade é mutável e nem sempre coincidente com alguns preconceitos: ao contrário do que por vezes é partilhado em público, aumentaram os recursos humanos nos tribunais, aumentaram os salários de magistrados e diminuíram substancialmente na última década os processos judiciais entrados nos tribunais cíveis, por exemplo. Mas a sua duração manteve-se a mesma ou aumentou. Significa isto que juízes, procuradores e funcionários judiciais trabalham menos? Não necessariamente. Na verdade, sabemos muito pouco sobre isso, para além de uma perceção de descontentamento de muitos profissionais judiciários.

Temos mais dados recolhidos sobre o desempenho dos sistemas e até disponíveis, mas continuamos, por exemplo, sem saber números corretos sobre a duração média de um processo judicial que inclua uma fase de recursos ou sem dados sobre a reincidência criminal em Portugal, dois indicadores decisivos para conhecer objetivamente o modo como a justiça funciona. Gastamos bastantes recursos públicos na justiça, em termos europeus, mas avaliamos pouco os seus resultados, dos sistemas e das políticas, e investimos aos supetões e sem grande critério. Nunca se investiu tanto no pagamento a advogados para representar quem não tenha capacidade económica para o fazer e, ao mesmo tempo, existe a perceção de que usar a justiça é demasiado caro para muitos logo acima de um limiar de incapacidade económica considerada para este efeito.

O que poderia então ser feito?

a) Criar novas ferramentas de trabalho nos tribunais e com os tribunais, parametrizar processos de trabalho dos tribunais e definir claramente conteúdos funcionais e capacidades de gestão.

b) Detetar e rever os momentos críticos de ineficácia, de demora excessiva ou de fragilidade garantística nos processos, na legislação substantiva e no direito e na prática processuais.

c) Modernizar e aproveitar melhor para a economia e para a sociedade as potencialidades dos registos públicos.

d) Rever as atribuições e recursos do Ministério Público, a política criminal e a organização da investigação criminal.

e) Reajustar os meios de resolução alternativa de litígios existentes (RAL) e criar tribunais multiportas, integrando meios RAL, e tribunais online.

f) Avaliar e eventualmente rever o modelo de acesso ao direito à justiça ("apoio judiciário") e os custos de uso da justiça.

g) Reformar (finalmente) as infraestruturas prisionais e reforçar os meios de reinserção social e de execução de penas.

h) Planear a médio e longo prazo as necessidades de pessoas e as suas qualificações para os sistemas de justiça (tribunais, registos, Polícia Judiciária, medicina legal, prisões e reinserção social, propriedade industrial).

i) Dar mais publicidade ao funcionamento do sistema judicial, mais compreensibilidade à sua comunicação institucional com as pessoas e recolher e partilhar dados de gestão e de desempenho dos sistemas.

Na próxima semana, procurarei detalhar estas ideias, de modo a deixar um contributo para um debate necessário, no advento de um novo momento político.


Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

QOSHE - De que precisa a justiça num novo ciclo político? (I) - Miguel Romão
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De que precisa a justiça num novo ciclo político? (I)

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24.11.2023

Os últimos anos foram um tempo de demasiada imobilidade e de algum descentramento das necessidades fundamentais dos diferentes sistemas que compõem os serviços públicos da justiça e das legítimas expetativas dos seus utilizadores. E passou-se de um momento de escassez e quase impossibilidade de investimento nos primeiros anos pós-2015 para uma voracidade comunicacional, de consumo de recursos no contexto PRR, que arrisca a deixar quase tudo na mesma. Até porque a realidade é mutável e nem sempre coincidente com alguns preconceitos: ao contrário do que por vezes é partilhado em público, aumentaram os recursos humanos nos tribunais, aumentaram os salários de magistrados e diminuíram substancialmente na última década os processos judiciais entrados nos tribunais cíveis, por exemplo. Mas a sua duração manteve-se a mesma ou aumentou. Significa isto que juízes, procuradores e funcionários judiciais trabalham menos? Não........

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