O nosso tempo é herdeiro de uma euforia de fim de século, marcado pelo grito de Fukuyama de que havíamos chegado ao fim da História, que os valores liberais "ocidentais" tinham ganho. Mas o nosso tempo afinal percebeu, cedo, que a História avançaria como de costume. Os tempos de hoje, por todo o "Ocidente", são herdeiros da decadência do pluralismo que iniciava os seus passos contra a ideia de que só um conjunto específico de valores importava. Nestes tempos, o pluralismo dá lugar a uma guerra ideológica, em que, se o estigma é a cavalaria pesada, o medo de quem não "pensa como eu" é o comandante. O problema é que, como Caeiro dizia: "Se as cousas fossem como tu queres, seriam só como tu queres."

Há vários lados desta guerra: uns rejeitam, compreensivelmente, a "normalização" de ideias perigosas para a nossa democracia. Excluem certas ideias pertencentes a movimentos da direita radical, não as deixam sequer ser debatidas, na crença de que isso parará a tal normalização. Esquecem-se, no entanto, que a normalização já aconteceu, pelas mãos de populistas e de demasiados eleitores ocidentais, e que não a conseguimos parar pela condescendência e recusa, antes pela prática democrática que estes populistas tendem a contundir.

Do outro lado do campo de batalha, é comum ouvir-se: "Se não entendes, não sou eu que tenho de te educar." Mas o problema é que, quando entram na esfera da superioridade, esquecem-se, ironicamente, de que a hierarquia implica sempre exclusão. De um lado a esquerda radical, que entrou em solilóquio, e do outro os liberais, que caem muitas vezes na famosa frase de Bill Clinton: "It"s the economy, stupid!" E, se não entendes, é porque não chegaste lá ainda. Não sejas estúpido.

Quando andamos muito tempo na esfera da superioridade moral ou na esfera da superioridade intelectual, criamos uma redoma, mesmo sem querer, da qual expulsamos imediatamente as pessoas que não concordam em absoluto connosco. E estas pessoas, expulsas do seu campo ideológico natural, veem depois à sua frente duas avenidas: a do statu quo, com a abrangência típica de um partido catch all; ou a do ataque ao sistema, com a abrangência típica de um partido populista.

A avenida do ataque ao sistema também constrói uma redoma. A intolerância e o medo são usados como armas numa guerra construída entre "nós" e os "outros". Mas o "nós" é menos restritivo. Para o líder do partido de direita radical, o "nós" é representado pelos portugueses de bem. A redoma não é criada pela superioridade intelectual (até porque não há ideias concretas neste partido), nem pela superioridade moral (apesar de haver muitos sermões de moralidade), mas pela superioridade do próprio grupo em relação a quem está de fora. Este grupo, os de bem, é tão mais forte quanto maior e, por isso, a direita radical tem a tendência a querer expandir - e para expandir é preciso haver flexibilidade nas ideias.

É por isso mesmo que Ventura ora se desfaz em elogios a Passos Coelho, ora acompanha a esquerda na ideia de que tudo de mau vem da troika; ora defende que se deve liberalizar a economia, ora defende que se deve nacionalizar a TAP; ora pede a demissão de tudo e de todos, ora diz que é preciso serenidade quando o Governo está prestes a ser demitido. É uma dança de cintura notável, mas perigosa. O inimigo é quem está lá longe, são os "outros" - ora a população cigana, ora os imigrantes, ora o Estado, ora as grandes empresas, ora os socialistas, ora os liberais. E quem foi expulso dos outros campos ideológicos, que entretanto se fecharam sobre si próprios, há de encontrar ali qualquer coisa que lhe sirva. Ou, por outras palavras, se calhar até acaba a votar no líder desse partido porque "ele até diz algumas verdades".

Até porque a outra alternativa, a outra avenida, é ficar tudo na mesma. E a maioria das pessoas, como se tem visto pelas últimas eleições e como acredito que se possa verificar a 10 de março, olhando à volta e vendo um caos desconhecido, prefere votar no caos que conhece. Temos tido em democracia alguns momentos Hobbesianos destes, em que as pessoas sinalizam a vontade de um governo estável quando supõem uma espécie de anarquia volúvel à vista. E esse governo estável - que já provou, aliás, ser tudo menos estável - tem grandes probabilidades de continuar a ser um governo do PS. Pelo menos enquanto os outros partidos (os democráticos) não saírem da redoma.

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QOSHE - Idos de março - Maria Castello Branco
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Idos de março

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30.12.2023

O nosso tempo é herdeiro de uma euforia de fim de século, marcado pelo grito de Fukuyama de que havíamos chegado ao fim da História, que os valores liberais "ocidentais" tinham ganho. Mas o nosso tempo afinal percebeu, cedo, que a História avançaria como de costume. Os tempos de hoje, por todo o "Ocidente", são herdeiros da decadência do pluralismo que iniciava os seus passos contra a ideia de que só um conjunto específico de valores importava. Nestes tempos, o pluralismo dá lugar a uma guerra ideológica, em que, se o estigma é a cavalaria pesada, o medo de quem não "pensa como eu" é o comandante. O problema é que, como Caeiro dizia: "Se as cousas fossem como tu queres, seriam só como tu queres."

Há vários lados desta guerra: uns rejeitam, compreensivelmente, a "normalização" de ideias perigosas para a nossa democracia. Excluem certas ideias pertencentes a movimentos da direita radical, não as deixam sequer ser debatidas, na crença de que isso parará a tal normalização. Esquecem-se, no entanto, que a normalização já aconteceu, pelas mãos de populistas e de demasiados eleitores ocidentais, e que........

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