A caça às minorias é o sintoma trágico de uma sociedade em decadência. Quanto maior a crise social, mais difícil se torna a tarefa de desconstrução das razões que a causaram. É, evidentemente, muito mais fácil culpar os “senhorios sionistas assassinos” do que ter uma conversa séria sobre a falta de políticas públicas para a crise da Habitação. Ou muito mais fácil acender tochas no Martim Moniz, enquanto se grita que vem aí uma “invasão islâmica”, do que ir ao site do Instituto Nacional de Estatística.

(E claro que acredito que haja uns quantos energúmenos a juntar-se ao movimento Casa para Viver, usando-o como cavalo de Tróia para entrar em histeria colectiva contra o “capital sionista”. O que me arrepia, verdadeiramente, é o silêncio que se segue.)

Os líderes do movimento disseram -- e bem -- que não controlam o que é empunhado, mas recusam-se a condenar as declarações; dos principais candidatos, para variar, não houve nenhuma reação; nas redes sociais, ouviu-se pouco; no comentário político, algumas denúncias, mas nada de extraordinário. O único partido a assinalar oficialmente o acontecimento foi o Bloco de Esquerda -- mas não pelas melhores razões. No seu órgão de informação oficial, o Bloco publicou um artigo intitulado “Capital israelita aumenta pressão imobiliária no Porto”, em que tentou justificar, de forma francamente desonesta, um acto que tem demasiados ecos históricos para ser permeável à demagogia política. É inaceitável. Do outro lado, um movimento de extrema-direita quer marchar no Martim Moniz contra os imigrantes já este sábado. O que se passa?

Temo que nos tenhamos esquecido, imbuídos de privilégio, que a democracia pode ser utilizada como um veículo para a tirania. É que o maior perigo que vivemos hoje na Europa e no restante mundo “ocidental” não é a inversão do movimento histórico em direção à democracia, antes a potencial ascensão de um tipo de democracia iliberal. As salvaguardas legais e constitucionais perdem força quando as maiorias se demonstram indiferentes ou até hostis aos ideais liberais. A maioria das pessoas está mais preocupada com outras questões do que com a liberdade em si. Muitos, aliás, não pensarão duas vezes antes de votar num governo iliberal se o candidato prometer segurança face à violência, estabilidade face às dificuldades socioeconómicas, proteção de um estilo de vida ao qual estão habituados, ou a negação da liberdade de quem odeiam.

E, quando a democracia começa a quebrar e movimentos opressivos conquistam sondagens, os crentes da democracia liberal insistem que é porque a democracia não está a funcionar bem -- basta que haja uma verdadeira participação cívica para que as maiorias não oprima as minorias. Esta crença de que amor à liberdade é uma condição humana natural não passa disso mesmo -- um pressuposto de fé. Longe de ser a condição natural da humanidade, é intrinsecamente frágil e as sociedades que a têm serão sempre a excepção.

A liberdade exige um Estado que funcione, uma burocracia que exista o quanto baste, um sistema jurídico que não seja excessivamente corrupto e uma cultura política que permita a independência das instituições. A liberdade não pode depender da fé, sob o risco de ficarmos cegos, como o Bloco de Esquerda aparentou estar, ou mudos, como os restantes partidos políticos que continuam a acreditar que, se taparmos bem os olhos e respirarmos baixinho, o monstro vai-se embora. Mas nunca foi.

Consultora política

QOSHE - Estado Sobre a Cegueira - Maria Castello Branco
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Estado Sobre a Cegueira

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02.02.2024

A caça às minorias é o sintoma trágico de uma sociedade em decadência. Quanto maior a crise social, mais difícil se torna a tarefa de desconstrução das razões que a causaram. É, evidentemente, muito mais fácil culpar os “senhorios sionistas assassinos” do que ter uma conversa séria sobre a falta de políticas públicas para a crise da Habitação. Ou muito mais fácil acender tochas no Martim Moniz, enquanto se grita que vem aí uma “invasão islâmica”, do que ir ao site do Instituto Nacional de Estatística.

(E claro que acredito que haja uns quantos energúmenos a juntar-se ao movimento Casa para Viver, usando-o como cavalo de Tróia para entrar em histeria colectiva contra o “capital sionista”. O que me arrepia, verdadeiramente, é o silêncio que se segue.)

Os líderes do movimento disseram -- e bem -- que não controlam o que é empunhado, mas........

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