Dizem os entendidos que a pujança do Partido Social Democrata reside na sua recusa do pensamento único. Enquanto no lado oposto há uma sintonia ideológica quase simbiótica, o PSD acolhe a controvérsia, o embate sem disfarces, com coragem, sem receio das guerras fratricidas. Afinal de contas, a democracia existe porque se quer o direito à discussão sem medos.

Santana Lopes sentiu na pele os reveses dessa pujança -- não hesitou em queixar-se ao país dos "irmãos mais velhos" que pareciam empenhados em sabotar o seu Governo. "O meu governo é um bebé na incubadora que precisa de ser acarinhado", dizia, em jeito de recado à oposição interna do seu partido. Na São Caetano, a oposição a Santana Lopes estava constantemente em alvoroço: o homem seria um grande populista, capaz, segundo eles, de alcançar uma maioria absoluta em dois anos. Dar uma maioria absoluta ao próprio partido: o pânico.

Um dos irmãos mais velhos era, aliás, o político anti-política e ex-primeiro-ministro de duas maiorias absolutas, Cavaco Silva, que acabara de publicar um artigo esmagador no Expresso em que pedia a políticos competentes que afastassem incompetentes: os quadros políticos em Portugal estavam degradados. Por outras palavras, o país via um antigo general, que se dizia pouco afecto a "politiquices" e golpes palacianos, a dar um golpe final na credibilidade do governo do seu próprio partido. A resposta de Santana foi a gota d"água para Jorge Sampaio, que reúne nessa mesma noite os seus conselheiros para ponderar a viabilidade de um primeiro-ministro que, para além de enxovalhado pelos demais "generais" laranjas, se dizia um bebé prematuro a precisar de ser acarinhado.

Mas nada disto é novidade no PSD, que se tem habituado a que as discussões internas sejam muito mais violentas do que as interpartidárias. Cada um acha que o outro faz mal ao Partido, que quem devia estar ali a definir o cor-de-laranja era ele mesmo, que o outro é um populista, como Santana, ou que tem tiques de ditador, como Sá Carneiro, ou é um traidor, como Durão Barroso, ou um "vaidoso, vulgar, manipulador, demagogo, narcisista, cínico, estatista, burocrata, maníaco,...parolo...", como Cavaco Silva.

Vimos esta semana um dos irmãos mais velhos de Luís Montenegro, também um ex-primeiro-ministro avesso a tricas e com uma aura sebastianista à direita, fazer ao actual líder do PSD aquilo que Cavaco Silva fez a Santana -- com mais charme, mais "politiquice", mas igualmente duro. Desautorizou o líder do próprio Partido, que parece ter-se finalmente apercebido que o PSD está a ser cercado à esquerda e à direita e que, se quer vencer eleições, tem de convencer os mais cépticos de que um voto no Chega será um voto no Partido Socialista. Num discurso críptico que agitou as águas entre os especialistas em interpretação e gramática nas redes sociais, intrometeu-se na estratégia de Montenegro para acabar a receber elogios de André Ventura. A postura contrasta bem com a postura mais senatorial de Cavaco Silva, que, pela primeira vez, não hesita em apoiar o candidato social-democrata a primeiro-ministro -- a diferença de postura poderá talvez ser explicada pela ambição política de cada um.

Para o bem ou para o mal, a direita tem mais facilidade em aceitar laivos individualistas e é mais receosa de colectivismos. Um individualista preza a sua liberdade e autonomia, enquanto os partidos políticos proporcionam um quadro comum, promovendo objectivos partilhados e uma plataforma para esforços coordenados. A adesão a estas entidades implica normalmente o alinhamento com os princípios e políticas prescritos, que podem não coincidir necessariamente com as convicções individuais. Um individualista desconfia do poder de entidades colectivas, porque para um individualista os grupos surgem de indivíduos que unem forças para benefício mútuo. Um partido é uma abstração, uma construção que representa a ligação entre indivíduos. Um colectivista, por outro lado, vê os grupos como entidades que têm uma existência muito concreta, sem os quais os indivíduos não existem. E no PSD pós Sá Carneiro, que escolheu um afastamento claro dos Socialistas, a tendência tem sido à direita, pondo o indivíduo à frente do Partido.

No Partido Socialista, a história é outra. Não inteiramente colectivista -- como o PCP, que não gosta muito de eleições internas --, aceita e promove o debate, a discussão de ideias, até celebra alguma agressividade nas campanhas internas (Pedro Nuno Santos foi aliás muitas vezes bruto com José Luís Carneiro, fazendo lembrar a dureza de Costa contra Seguro). Mas a diferença é que, no dia a seguir às eleições, deixam de se querer matar uns aos outros. Os seguristas foram integrados nos governos de António Costa e fala-se da inclusão de Carneiro num possível governo de Pedro Nuno. Por sua vez, Pedro Nuno foi ministro de António Costa, apesar de ser sabido que o que queria era ser primeiro-ministro e que Costa queria tudo menos isso. Ainda assim, António Costa lançou-se para o defender e, ao que parece, não vai tentar limitar as suas possibilidades de vir a ser primeiro-ministro. Temos um (quase) ex-PM a dar lugar a um putativo PM. No PSD, temos um ex-PM a cortar as pernas a um putativo PM. No PS, quem está na incubadora tem direito a ser acarinhado. No PSD, o irmão mais novo tem de fazer queixinhas ao país, mesmo se o bebé prematuro já for primeiro-ministro. Resta saber se Montenegro sobrevive à incubadora.


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QOSHE - A Incubadora de Montenegro - Maria Castello Branco
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A Incubadora de Montenegro

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22.12.2023

Dizem os entendidos que a pujança do Partido Social Democrata reside na sua recusa do pensamento único. Enquanto no lado oposto há uma sintonia ideológica quase simbiótica, o PSD acolhe a controvérsia, o embate sem disfarces, com coragem, sem receio das guerras fratricidas. Afinal de contas, a democracia existe porque se quer o direito à discussão sem medos.

Santana Lopes sentiu na pele os reveses dessa pujança -- não hesitou em queixar-se ao país dos "irmãos mais velhos" que pareciam empenhados em sabotar o seu Governo. "O meu governo é um bebé na incubadora que precisa de ser acarinhado", dizia, em jeito de recado à oposição interna do seu partido. Na São Caetano, a oposição a Santana Lopes estava constantemente em alvoroço: o homem seria um grande populista, capaz, segundo eles, de alcançar uma maioria absoluta em dois anos. Dar uma maioria absoluta ao próprio partido: o pânico.

Um dos irmãos mais velhos era, aliás, o político anti-política e ex-primeiro-ministro de duas maiorias absolutas, Cavaco Silva, que acabara de publicar um artigo esmagador no Expresso em que pedia a políticos competentes que afastassem incompetentes: os quadros políticos em Portugal estavam degradados. Por outras palavras, o país via um antigo general, que se dizia pouco afecto a "politiquices" e golpes palacianos, a dar um golpe final na credibilidade do........

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