Assinalam-se os 50 anos de uma revolução que levou à recuperação da democracia em Portugal, mas também à recuperação da esperança de um futuro de liberdades em Espanha. Aquele 25 de Abril significou muito para os espanhóis, que ainda não viam uma saída para a ditadura do General Franco. Agora, ao ser comemorada uma data tão importante, não posso deixar de reconhecer quão próximos os espanhóis e os portugueses nos tornámos.

Sempre se disse sobre nós que estávamos separados por muito mais do que uma fronteira; que o nosso passado estava repleto de receios e desconfianças. E seguramente foi assim durante séculos. Mas também não quero esquecer o quanto nos uniu a passagem do tempo. Parece-me que, hoje, devo insistir em tudo o que partilhámos ao longo do tempo: fomos dois povos que se lançaram numa arriscadíssima conquista do mar, quando o mar era uma incógnita (costumo dizer que a volta ao mundo tem algo de sublime, e que a navegação do século XV está muito à frente da conquista do espaço no século XX); partilhámos a experiência colonial na América, que nos tornou muito diferentes do que teríamos sido sem esse contacto frutífero (e vivemos um trauma nacional semelhante com a chegada das independências); tivemos de enfrentar uma inquisição retardadora da mudança social; lutámos arduamente pela melhoria económica dos nossos respetivos povos, afetados por fracos processos de industrialização, secularmente atrasados em relação a uma Europa muito mais próspera; conhecemos o amargo sofrimento da emigração; padecemos no século XX duas ditaduras pessoais muito semelhantes, muito retrógradas, muito isoladas, muito longevas... e mesmo quando a democracia chegou às nossas respetivas sociedades, fê-lo em condições especialmente difíceis: a guerra colonial e o terrorismo, dois fenómenos que outrora ameaçaram seriamente os nossos Estados e que o tempo que passou faz parecer remotos.

No entanto, os últimos 50 anos parecem ter-nos redimido dos nossos infortúnios: aderimos ao mesmo tempo à União Europeia pela mão de líderes solventes, levando a cabo nos nossos respetivos países um exercício de renovação interna e de recuperação económica; abrimos as nossas sociedades a mudanças sociais que foram certamente estimuladas pelo turismo estrangeiro, que manifestava a sua curiosidade por sociedades profundamente marcadas por um património cultural que refletia a sua própria idiossincrasia, sob o denominador comum da beleza e, talvez no caso português, realçado por uma subtil sensibilidade em contraste com a expressividade contundente dos espanhóis. De forma ritmada, tornámo-nos países na moda, onde a cozinha sofisticada e o bom clima, juntamente com a animação das nossas ruas, encorajaram muita gente a querer conhecer-nos, e também a mudar-nos. Já fomos países com senhoras vestidas de luto, e hoje temos museus de vanguarda da primeira linha onde, por exemplo, se expõe a obra de Banksy.

Mas se alguma coisa pode descrever estes 50 anos de democracia portuguesa e espanhola, é a aproximação das nossas sociedades. Redescobrimo-nos um ao outro. No plano económico, sem dúvida: quase 50 mil milhões de euros em volume de comércio bilateral, cerca de 40 mil milhões de euros no total dos investimentos que fazemos de cada lado da fronteira. E quero sublinhar que, em termos de proporcionalidade em relação ao PIB, os números são talvez mais favoráveis a Portugal do que a Espanha, apesar do que possam apresentar em termos absolutos. Quero ir mais longe: no domínio das infra-estruturas, estamos a trabalhar muito seriamente para conseguir uma maior interconexão energética e uma mobilidade mais ágil de pessoas e mercadorias. Também os nossos respetivos Planos de Recuperação e Resiliência contemplam este bilateralismo ibérico para os tornar mais eficazes e solventes. E, para trabalharmos no sentido desta aproximação, realizamos Cimeiras Luso-Espanholas regulares e estáveis, que dão a medida desta nova realidade que nos aproxima com uma persistente vocação de cooperação.

A relação entre Portugal e Espanha fortaleceu-se de uma forma especial pela nossa participação na Conferência Ibero-Americana desde 1991, também no início das nossas respetivas democracias. Creio que ambos, Portugal e Espanha, temos sabido gerir corretamente a nossa relação com os países ibero-americanos. Estou convencido de que conseguimos, com sucesso, estabelecer um clima de entendimento e compreensão que tem ido para além dos programas de cooperação cada vez mais robustos. A importância crescente das nossas respetivas línguas tem servido de estímulo à consolidação desta realidade ibero-americana. E a verdade é que ambos os países sentimos que acertámos em cheio ao conceber um fórum em que não se pode destacar um único momento de crise ao longo destes mais de trinta anos de Cimeiras de Chefes de Estado e de Governo; aliás, com uma grande disparidade de formas políticas que poderiam ter fomentado dissensões e divergências. Certamente, não foi este o caso.

Por tudo isto, por tantas mudanças positivas, em muitos casos partilhadas com Espanha, quero felicitar Portugal nos 50 anos de democracia. Uma democracia serena, capaz de assumir a diferença sem sobressaltos, como tem demonstrado através de constantes exercícios de coabitação entre a esquerda e a direita; uma democracia que mudou o destino dos portugueses de uma forma tão positiva quanto irreversível.


QOSHE - 50 anos de Democracia - Juan Fernández Trigo
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50 anos de Democracia

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08.04.2024

Assinalam-se os 50 anos de uma revolução que levou à recuperação da democracia em Portugal, mas também à recuperação da esperança de um futuro de liberdades em Espanha. Aquele 25 de Abril significou muito para os espanhóis, que ainda não viam uma saída para a ditadura do General Franco. Agora, ao ser comemorada uma data tão importante, não posso deixar de reconhecer quão próximos os espanhóis e os portugueses nos tornámos.

Sempre se disse sobre nós que estávamos separados por muito mais do que uma fronteira; que o nosso passado estava repleto de receios e desconfianças. E seguramente foi assim durante séculos. Mas também não quero esquecer o quanto nos uniu a passagem do tempo. Parece-me que, hoje, devo insistir em tudo o que partilhámos ao longo do tempo: fomos dois povos que se lançaram numa arriscadíssima conquista do mar, quando o mar era uma incógnita (costumo dizer que a volta ao mundo tem algo de sublime, e que a navegação do século XV está muito à frente da conquista do espaço no século XX); partilhámos a experiência colonial na América, que nos tornou muito diferentes do que teríamos sido sem esse contacto frutífero (e vivemos um trauma nacional semelhante com a chegada das independências); tivemos de enfrentar uma inquisição retardadora da mudança social; lutámos arduamente pela melhoria económica dos nossos........

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