O erro crasso foi cometido e dificilmente tem retorno. A narrativa artificial de que o país estava um caco fez o seu caminho entre as oposições e foi amplificada pelos órgãos de comunicação social. Para os primeiros, é o único caminho que conhecem, onde os seus interesses e os das suas clientelas partidárias estão, não poucas vezes, antes do interesse do país e da população. Para os segundos, a cacofonia da desgraça alimenta-lhes as páginas de abertura, algumas vezes atropelando as regras basilares da deontologia jornalística. Agora, com a mudança de ciclo político, aí está o efeito boomerang.

As pedras atiradas estão a dar a volta e a cair no terreno dos atuais inquilinos do poder, e até de alguns órgãos de comunicação social, forçando-os a cometer erros básicos na procura de vender a ideia de que o que aí vem é sempre mais, melhor e diferente. No meio desta guerrilha, quem aproveita é a extrema-direita, que vem paulatinamente trilhando o seu caminho até chegar ao poder, altura em que será, naturalmente, desmascarada.

Vamos por partes, começando pela narrativa do país em cacos. Claro que Portugal tem problemas e enfrenta desafios. Claro que devemos ter todos a ambição de um país ainda mais avançado e próspero. Claro que não devemos esconder as ineficiências. Mas daí a passar repetidamente a ideia de que o país piora, tudo está um caos e tudo é preciso mudar vai a distância que separa os alarmistas dos racionais. Os nossos problemas não são originais, existem também na Europa mais rica. Habitação, Saúde, Educação, Segurança Social, transportes, emprego, é escolher. Apesar disso, basta andar pelo nosso país para perceber que o ambiente é de normalidade, que as coisas funcionam, com mais ou menos dificuldades.

Dito isto, aqueles que se alavancam politicamente no pressuposto do caos terão de enfrentar o teste do algodão. O discurso de que tudo está em cacos reclama a capacidade de tudo resolver. Assim, quando chegam ao poder é-lhes exigida uma mudança total, radical, transversal e, claro, rápida. Eles próprios, na sua sanha pelo poder, abdicaram do estado de graça.

Vejamos, agora, um exemplo. Quem sempre afirma que há um excesso de carga fiscal tem de mostrar, conforme prometeu, que faz diferente e incomparavelmente melhor do que aqueles que, na sua narrativa, são os campeões dos impostos. Para colocar a questão em termos numéricos, se numa das próximas folhas salariais um português verificar que teve uma redução de 10 euros no IRS, seria de esperar que, pelo menos, 8 ou 9 euros tivessem resultado de uma medida do novo Governo. Ora o que se conheceu esta semana é que o prometido impacto fiscal do PSD de 1500 milhões de euros no IRS incorpora 1327 milhões que já estão em vigor desde o início do ano e são da responsabilidade do anterior Governo do PS. Isto significa que, dos tais 10 euros de redução mensal do IRS do português incógnito, quase 9 foram da responsabilidade do PS e apenas o restante se deve ao PSD. Mais ao menos o contrário do que esperava o eleitorado da AD.

Acresce que a proposta dos sociais-democratas cobre mais escalões, o que significa que poderá até ser prejudicial para os que menos ganham. Também quanto ao IRS jovem, a insuspeita consultora EY fez as contas e afirma que a proposta deste Governo é pior que a do PS para a maioria dos contribuintes elegíveis.

Perante este arranque em falso, a comunicação social não foi meiga, com o Expresso a marcar o tom. Como sabiamente afirmou um dia Pacheco Pereira, quem vive da imprensa morre pela imprensa. É o efeito boomerang.

QOSHE - O efeito boomerang - José Mendes
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O efeito boomerang

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14.04.2024

O erro crasso foi cometido e dificilmente tem retorno. A narrativa artificial de que o país estava um caco fez o seu caminho entre as oposições e foi amplificada pelos órgãos de comunicação social. Para os primeiros, é o único caminho que conhecem, onde os seus interesses e os das suas clientelas partidárias estão, não poucas vezes, antes do interesse do país e da população. Para os segundos, a cacofonia da desgraça alimenta-lhes as páginas de abertura, algumas vezes atropelando as regras basilares da deontologia jornalística. Agora, com a mudança de ciclo político, aí está o efeito boomerang.

As pedras atiradas estão a dar a volta e a cair no terreno dos atuais inquilinos do poder, e até de alguns órgãos de comunicação social, forçando-os a cometer erros básicos na procura de vender a ideia de que o que aí vem é sempre mais, melhor e diferente. No meio desta........

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