Quando o emergente populismo se cruza com o insucesso do sistema político tradicional, acontece o inverosímil. Javier Milei, o autointitulado liberal-libertário, foi eleito presidente da Argentina. Pelo meio, o veículo de sempre, um qualquer programa de televisão onde cada barbaridade proferida se converte em mais uns pontos na popularidade. A pergunta que se impõe: a vitória resulta do mérito do protagonista ou do demérito do sistema político?

Na procura de uma resposta, importa perceber quem é Javier Milei. Pouco mais de 50 anos, oriundo da classe média da capital argentina, economista. A sua notoriedade explode enquanto comentador económico na televisão, adotando a estratégia clássica de capitalizar o descontentamento do povo e propondo caminhos tão radicais que seduzem os desesperados. Na Argentina, serão a maioria.

Milei não deixou nada ao acaso, a começar pelo seu aspeto, que sugere a revolta, e pela linguagem, verbalizando de forma rasca as suas ideias. As propostas para "transformar a Argentina numa potência" são demolidoras, a começar pela adoção do dólar americano como moeda oficial, o que significa fechar o Banco Central do seu país. Num país com a inflação em níveis estratosféricos, em que o seu peso nada vale, não é mal jogado "dolarizar" o tema, fazendo o povo acreditar que aí poderá estar a salvação. Depois, quer acabar com o ensino público obrigatório, uma das mais importantes medidas no cardápio de qualquer ditador. Nada mal! Ao nível económico, não faz por menos, propondo-se acabar com as relações com Brasil e China. Se a Argentina fosse Portugal, seria o mesmo que ir a votos por aqui com a proposta de cortar relações comerciais com a Espanha e a Alemanha. E porquê? Porque o vizinho Brasil e o colosso China são, na sua visão do bem e do mal, uns comunistas e isso é território fora do seu espaço de decência. Da mesma forma que considera o Papa Francisco, seu compatriota, um comunista, para além de burro e representante do maligno. Imparável!

Milei é um defensor da desconstrução, um paladino do não-Estado. Chegou a afirmar que "entre o Estado e a máfia, escolhia a máfia". Por alguma razão, não me surpreende.

A estas potentes ideias de futuro para a Argentina, o anarcocapitalista Milei ainda acrescenta umas miudezas. É contra o aborto, propõe que se possa vender os filhos, aposta na disseminação de armas pessoais e quer criar uma bolsa de órgãos humanos.

A verdade é que Milei ainda não tomou posse e já pôs em marcha a narrativa de retrocesso em relação a muitas das suas perigosas - para além de fantasiosas - propostas. Ainda bem que concorreu contra os políticos mentirosos e corruptos do sistema, pois está já a dar-lhes uma grande demonstração de competência na arte de enganar o povo.

Milei é um defensor da desconstrução, um paladino do não-Estado. Chegou a afirmar que "entre o Estado e a máfia, escolhia a máfia". Por alguma razão, não me surpreende. Contudo, volto à pergunta inicial, a que procura uma explicação para que mais de metade dos eleitores do seu país tenham feito dele presidente da República. Não há como fugir: há mérito pessoal do recém-eleito, que triunfa sobre o sistema sendo ainda pior que o sistema; e há demérito no sistema político tradicional, que não encontra forma de se reinventar e trazer prosperidade a um povo. A democracia, enquanto regime, e os partidos, enquanto sistema, não estão isentos de imperfeições, a maior das quais é cristalizarem-se na missão da procura do poder a qualquer custo, abrindo brechas para os vendedores da banha da cobra.

Professor catedrático

QOSHE - Argentina: a falência do sistema - José Mendes
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Argentina: a falência do sistema

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26.11.2023

Quando o emergente populismo se cruza com o insucesso do sistema político tradicional, acontece o inverosímil. Javier Milei, o autointitulado liberal-libertário, foi eleito presidente da Argentina. Pelo meio, o veículo de sempre, um qualquer programa de televisão onde cada barbaridade proferida se converte em mais uns pontos na popularidade. A pergunta que se impõe: a vitória resulta do mérito do protagonista ou do demérito do sistema político?

Na procura de uma resposta, importa perceber quem é Javier Milei. Pouco mais de 50 anos, oriundo da classe média da capital argentina, economista. A sua notoriedade explode enquanto comentador económico na televisão, adotando a estratégia clássica de capitalizar o descontentamento do povo e propondo caminhos tão radicais que seduzem os desesperados. Na Argentina, serão a maioria.

Milei não deixou nada ao acaso, a começar pelo seu aspeto, que........

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