Poucos minutos antes de bater a hora certa, quem estiver de frente para a enorme estátua no topo da escadaria do Memorial a Chiang Kai-shek, no centro de Taipé, pode ver os soldados de uniforme branco aproximarem-se com os seus gestos mecânicos. É o render da guarda no edifício que presta homenagem ao líder que, em 1949, se refugiou na ilha após perder a Guerra Civil chinesa para os comunistas de Mao. Uma figura hoje divisiva, com os apoiantes a considerarem o líder dos nacionalistas como um herói e os detratores a denunciá-lo como um ditador.”

Começava assim uma reportagem que publiquei há pouco mais de um ano, recém-regressada de Taiwan. Na altura, a ideia que me ficou da capital da ilha a que os portugueses chamaram Formosa no século XVI foi a de uma cidade vibrante e moderna. Uma cidade muito chinesa, onde o Museu do Palácio Nacional contém os artefactos imperiais trazidos por Chiang e onde a escrita exibe os carateres tradicionais que a própria China continental já simplificou. Mas onde a tensa relação com Pequim - que vê Taiwan como província rebelde e não exclui recorrer à força para obter a reunificação - quase pode escapar ao visitante mais incauto, apesar de sempre latente.

Dia 13, Taiwan vai a votos e o resultado das presidenciais que irão escolher o sucessor de Tsai Ing-wen vai ditar o futuro da relação com Pequim. O mundo não esconde receios de uma nova guerra - com a China a invadir Taiwan aproveitando que as grandes potências - leia-se, sobretudo os Estados Unidos - estão entretidas a debater o apoio à Ucrânia face à Rússia ou a guerra entre Israel e o Hamas. Há dias, em entrevista ao DN, Isabel Meirelles, especialista em Assuntos Europeus, mostrava-se preocupada: “Estou convencida, e espero estar profundamente enganada, de que vai haver um ataque a Taiwan. E, se houver mais uma guerra, não sei bem como é que os europeus vão ter meios para reagir.” E, mesmo nos EUA - que em 1979 cortaram relações diplomáticas com Taiwan, mas mantêm relações comerciais e um forte apoio militar -, o presidente Joe Biden, que já enfrenta dificuldades para manter o apoio financeiro a Kiev, teria de convencer o Congresso a financiar um novo conflito, e com uma potência que não esconde a ambição de substituir a América como senhora do mundo. Um dilema que promete manter-se, mesmo que o republicano Donald Trump vença as presidenciais de novembro nos EUA, ou não fosse a China o inimigo número um tanto para democratas, como para republicanos.

Receios que a Mensagem de Ano Novo de Xi Jinping não veio dissipar. O presidente chinês apresentou a reunificação com Taiwan como “inevitabilidade histórica”, reafirmando a posição que sempre defendeu como prioridade do seu “reinado”, o mais longo desde Mao Tsé-Tung.

Em Taiwan, há um ano, questionados sobre uma possível invasão chinesa, quase todos deixavam no ar a mesma ideia: não queriam acreditar, mas iam-se preparando para essa eventualidade. Como as quatro dezenas de civis sentados em cadeiras de plástico a tomar apontamentos que vi no programa de treino proporcionado pela Academia Kuma. “No piso de baixo do edifício-adjacente à igreja presbiteriana Ché-lam, no centro de Taipé, os alunos escutam com atenção um formador que aponta para uma mira telescópica projetada no ecrã. A seu lado, um mapa mostra a Ilha de Taiwan e o estreito que a separa da China continental”, escrevi na altura.

Quando, em 1912, os revolucionários chineses derrubaram o Império Qing e, liderados por Sun Yat-sen, fundaram a República da China, Taiwan estava sob ocupação japonesa (desde 1895) e só em 1945, após a rendição do Japão no final da II Guerra Mundial, é que a ilha passou a estar sob administração chinesa. O momento de viragem deu-se em 1949, quando Chiang, líder do nacionalista Kuomintang (KMT), derrotado pelos comunistas de Mao na Guerra Givil (depois de terem sido aliados na luta contra o ocupante japonês), se muda para Taiwan com o Governo da República da China. Foram mais de dois milhões de pessoas a chegar com ele à ilha. Hoje Taiwan tem 23 milhões de habitantes, que, exceto os 2% de aborígenes, descendem de chineses han, dos que foram chegando desde o século XVII aos vindos em 1949.

Com Tsai impedida de se candidatar a um terceiro mandato, o favorito à sua sucessão é William Lai, do seu Partido Democrático Progressista (DPP) no poder e tradicionalmente pró-independência. Deputado e presidente da Câmara de Tainan, Lai foi primeiro-ministro de Tsai de 2017 a 2019 e há quatro anos desafiou-a, sem sucesso, nas primárias, antes de se tornar vice-presidente. Na campanha, Lai prometeu seguir Tsai em relação à China e procurar manter o statu quo do território - uma independência de facto, mas não formal.

Pela frente Lai tem o candidato do Kuomintang, Hou Yu-ih, um antigo polícia e agora presidente da Câmara de Nova Taipé. Já o antigo presidente da Câmara de Taipé Ko Wen-je vai concorrer pelo Partido do Povo de Taiwan (TPP). Os dois partidos da oposição falharam nas negociações para apresentar um candidato comum. O KMT e o TPP, que pretendem estreitar os laços com Pequim, acabaram por apresentar candidatos separados, o que pode ser visto como uma vitória para Lai.

Seja quem for o vencedor, a relação com Pequim continuará a ser o grande desafio para o líder de Taiwan, com o estreito e os seus 130km que separam a ilha do continente a pesar como uma ameaça à democracia que a sociedade taiwanesa construiu desde as primeiras eleições livres, em 1996. Taiwan é a 21.ª economia mundial e tem um PIB per capita de 34 050 dólares, ligeiramente abaixo do Japão. Taiwan é um dos líderes mundiais na produção de tecnologias de informação e comunicação, produzindo 65% dos semi-condutores a nível mundial, esses que são essenciais para os nossos telemóveis.

Enquanto esperamos pelos resultados, o título da reportagem de há um ano mantém-se atual: A ilha espera pelo melhor, mas prepara-se para o pior.

QOSHE - Taiwan a votos sob o fantasma da guerra - Helena Tecedeiro
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

Taiwan a votos sob o fantasma da guerra

7 8
06.01.2024

Poucos minutos antes de bater a hora certa, quem estiver de frente para a enorme estátua no topo da escadaria do Memorial a Chiang Kai-shek, no centro de Taipé, pode ver os soldados de uniforme branco aproximarem-se com os seus gestos mecânicos. É o render da guarda no edifício que presta homenagem ao líder que, em 1949, se refugiou na ilha após perder a Guerra Civil chinesa para os comunistas de Mao. Uma figura hoje divisiva, com os apoiantes a considerarem o líder dos nacionalistas como um herói e os detratores a denunciá-lo como um ditador.”

Começava assim uma reportagem que publiquei há pouco mais de um ano, recém-regressada de Taiwan. Na altura, a ideia que me ficou da capital da ilha a que os portugueses chamaram Formosa no século XVI foi a de uma cidade vibrante e moderna. Uma cidade muito chinesa, onde o Museu do Palácio Nacional contém os artefactos imperiais trazidos por Chiang e onde a escrita exibe os carateres tradicionais que a própria China continental já simplificou. Mas onde a tensa relação com Pequim - que vê Taiwan como província rebelde e não exclui recorrer à força para obter a reunificação - quase pode escapar ao visitante mais incauto, apesar de sempre latente.

Dia 13, Taiwan vai a votos e o resultado das presidenciais que irão escolher o sucessor de Tsai Ing-wen vai ditar o futuro da relação com Pequim. O mundo não esconde receios de uma nova guerra - com a China a invadir Taiwan aproveitando que as grandes potências - leia-se,........

© Diário de Notícias


Get it on Google Play