Umberto Eco disse-nos que a leitura faz a diferença. Ler significa ir além de uma vida limitada nas fronteiras estreitas do tempo que nos é dado viver. Quem cultiva a leitura e o conhecimento multiplica a sua existência inserindo nela o diálogo com as gerações que nos antecederam. Falamos de uma diferença em média entre meio século e seis mil anos. Eis o âmbito que nos reserva o efeito multiplicador da leitura e do diálogo cultural. Em Portugal, sabemos que os hábitos de leitura da população são baixos. A Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL) revelou, contudo, recentemente dados que contêm aspetos positivos. Os jovens com idades compreendidas entre os 15 e os 34 anos são os que mais compram livros entre nós. Os dados resultam de um inquérito feito a cerca de mil pessoas entre julho e agosto deste ano. No último ano, 28 % dos jovens dessa faixa etária foram dos que mais adquiriram livros. Dos respondentes, 62% compraram livros no último ano, e destes 70 % confirmaram ter comprado o mesmo número ou mais do que há um ano. Estes dados devem ser lidos com prudência, pois os hábitos culturais não mudam subitamente. O certo é que há mudanças que decorrem, antes do mais, dos progressos na escolarização. Temos, no entanto, presente o Inquérito sobre as Práticas Culturais, de 2020, realizado pelo Instituto de Ciências Sociais, com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, em que se concluía, no conjunto, que 61 % dos inquiridos não tinha lido no último ano qualquer livro.

O resultado do inquérito de agora constitui um sinal de esperança, mas obriga a um trabalho determinado da sociedade civil e do Estado no sentido do reforço da qualidade do serviço público de educação. Isto, porque o aumento das compras dos livros se concentra na Grande Lisboa e na Região Sul, devendo as práticas culturais ser transversais a todo o país e nos diferentes grupos sociais. Não haverá sustentabilidade cultural sem democratização do acesso a instrumentos culturais de qualidade, evitando-se a inércia ditada pela dependência de redes sociais em circuito fechado ou pela prevalência de fatores que desincentivam a cidadania. Se as compras de livros efetuadas pelos mais jovens subiram 44% por comparação com o período pré-pandemia, é natural que os hábitos de leitura para as gerações futuras esteja a sofrer uma mudança positiva. Há, porém, uma responsabilidade acrescida para os professores e educadores - que obriga à superação de um mero debate de índole corporativa, envolvendo investimento determinado na qualificação, na formação e na avaliação estrutural, das escolas, dos estudantes e dos professores.

Há muitas perguntas sobre o livro e a leitura: o livro em papel sobreviverá ao digital? A aprendizagem de hoje comprometerá os métodos tradicionais da leitura e da escrita? Num mundo complexo, teremos de saber lidar com a diversidade, mas nunca poderemos perder a relação de diálogo entre pessoas e saberes. Se falamos de cultura e de Humanidades temos de compreender que o saber e o saber fazer obrigam sempre à comunicação. O caminho longo que fizemos desde os aedos, que transmitiram de memória a Ilíada ou a Odisseia, até aos tipos móveis de Gutenberg ou às novas tecnologias de informação e comunicação obriga a compreender que um audiolivro, um e-book, um livro em papel, ajudam-se mutuamente, porque o que está em causa é a ligação ente ler e pensar, entre saber e dialogar, entre representar e refletir. O modo de ler altera-se ao longo do tempo. Há uma evolução que corresponde à necessidade que temos de compreender melhor o mundo e os outros. A liberdade e a autonomia individual alcançam-se e evoluem mercê do acesso ao conhecimento pela literacia. Daí a importância da educação para todos, com um efeito multiplicador extraordinário, desde a cultura à saúde, da defesa do bem comum à coesão social. Eis por que os sinais positivos quanto à leitura merecem uma atenção muito especial.

Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian

QOSHE - Hábitos de leitura. Quem lê? - Guilherme D’Oliveira Martins
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Hábitos de leitura. Quem lê?

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07.11.2023

Umberto Eco disse-nos que a leitura faz a diferença. Ler significa ir além de uma vida limitada nas fronteiras estreitas do tempo que nos é dado viver. Quem cultiva a leitura e o conhecimento multiplica a sua existência inserindo nela o diálogo com as gerações que nos antecederam. Falamos de uma diferença em média entre meio século e seis mil anos. Eis o âmbito que nos reserva o efeito multiplicador da leitura e do diálogo cultural. Em Portugal, sabemos que os hábitos de leitura da população são baixos. A Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL) revelou, contudo, recentemente dados que contêm aspetos positivos. Os jovens com idades compreendidas entre os 15 e os 34 anos são os que mais compram livros entre nós. Os dados resultam de um inquérito feito a cerca de mil pessoas entre julho e agosto deste ano. No último ano, 28 % dos jovens dessa faixa etária foram dos que mais adquiriram livros. Dos respondentes, 62% compraram livros no último ano, e destes 70 % confirmaram ter comprado........

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