Tornou-se ideia generalizada que Joe Biden é um candidato fraco para a reeleição: pela idade imprudentemente avançada, pela baixa taxa de aprovação presidencial. O que se passou nos últimos dias, porém, mostrou o contrário. Ou, pelo menos, que nem todos os dados são desfavoráveis ao atual presidente dos EUA.

A vitória esmagadora na Carolina do Sul não foi surpresa: não havia adversário real à altura. Mas os números impressionaram. As sondagens davam entre 75 a 80 por cento. Biden triturou com 96 por cento. Há quatro anos, depois de dois estados de arranque totalmente falhados (quarto no Iowa, quinto no New Hampshire), a Carolina do Sul fez Joe Biden renascer e lançar-se para uma nomeação que, na altura, se afigurava improvável.

Desta vez, o caso é diferente. A nomeação democrata não está em causa. Mas a capacidade de mobilizar quem lhe deu 81 milhões de votos na eleição geral de há quatro anos permanece como uma incógnita.

Já no New Hampshire, onde não concorreu, 65% dos democratas que foram votar escreveram o seu nome no boletim: nada mau para um candidato que parecia estar com dificuldades de mobilização.

Joe Biden sabe que uma das condições essenciais para poder ganhar em novembro é conseguir mobilizar fortemente o voto negro. Isso aconteceu em 2020 (e permitiu, por exemplo, a vitória democrata na Geórgia). Até há dias, parecia não estar a acontecer.

E foi, precisamente, por isso que uma das melhores notícias que as primárias na Carolina do Sul mostraram a Biden foram os 76% de negros no total dos votos antecipados e realizados à distância (13 pontos acima do que tinha acontecido há quatro anos).

Tendo em conta que Joe Biden ganhou o estado com 96% dos votos, é fácil concluir que os negros na Carolina do Sul, tal como o tinham feito em 2020, votaram com larga maioria em Biden. Nesse ano, Biden obteve 61% dos votos negros, que representavam 56% do eleitorado democrata nas primárias.
Como será nos outros estados? É cedo para saber - sendo já certo que em quase todos os outros casos, a percentagem de negros no total de votantes deverá ser bem menor. Mas uma coisa é certa: Joe Biden passou com distinção no primeiro teste da mobilização do voto negro para irem às urnas (ou votarem por correio) na eleição geral de 5 de novembro.

Outro mito em torno da alegada “inevitabilidade Trump” tem a ver com a tese em que muitos caem que sentencia uma espécie de “imunidade eleitoral” de Donald, caso seja condenado por algum crise federal. Ora, isso simplesmente não corresponde à verdade.

As eleições intercalares de novembro de 2022 já o tinham sinalizado de forma clara: os candidatos republicanos negacionistas do triunfo presidencial de Biden perderam quase todos nos estados competitivos, sobretudo os que concorriam ao posto de secretário estadual (quem certifica os resultados eleitorais).

Estudo realizado pelo Gallup, em dezembro passado, conclui que os americanos estão preocupados com a sua democracia num grau sem precedentes. Apenas 28 por cento dos adultos disseram estar satisfeitos com a forma como a democracia está a funcionar nos EUA - isto é ainda inferior aos 35 por cento registados numa sondagem, logo após a insurreição de 6 de janeiro de 2021.

Mais significativo ainda: pesquisa YouGov/CBS News, realizada em janeiro, mostrou que metade dos eleitores americanos garantiu que ter uma democracia funcional é uma preocupação imediata maior do que ter uma economia forte. Outro estudo, este da Associated Press, realizado entre 30 de novembro e 4 de dezembro, aponta que 67 por cento dos inquiridos disseram que o resultado das eleições presidenciais norte-americanas de 2024 será “extremamente ou muito importante” para o futuro da democracia no país. Numa pesquisa da August Morning Consult/Bipartisan Policy Center, 82 por cento dos eleitores disseram estar preocupados com a democracia nos EUA.

Dois em cada três americanos estão “seriamente preocupados” com uma repetição do dia 6 de janeiro de 2021 (sondagem Navigator, dezembro 2023) e 85 por cento estavam preocupados com a violência política no futuro.

Como tantas vezes acontece em sondagens, o diabo pode estar nos detalhes. Neste caso, na interpretação. Se é verdade que uma forte maioria de republicanos e dos democratas dizem estar preocupados com a democracia, o modo como cada campo define essas preocupações é bastante diferente: os democratas estão especialmente preocupados com a possibilidade de eventos semelhantes ao ataque ao Capitólio.

Uma quase unanimidade (94%) dos democratas mostra-se preocupada com a perspetiva de os congressistas republicanos ajudarem ou encorajarem os organizadores do ataque de 6 de janeiro e permitirem que milícias de supremacia branca presentes durante o ataque tenham desempenhado um “papel dominante” na decisão da direção do Partido Republicano - assim como mais de 70% dos independentes. Tanto os Democratas como os independentes consideraram o Partido Republicano como mais propenso à violência política do que o Partido Democrata, em 69 e 15 pontos percentuais, respetivamente.

Não restam grandes dúvidas que Biden e Trump serão investidos no próximo verão como nomeados presidenciais democrata e republicano: Biden pela segunda vez seguida, Trump pela terceira vez seguida (não acontecia desde Roosevelt, do lado democrata, que foi nomeado e eleito quatro vezes).
Uma repetição de um duelo para uma eleição geral é, já por si, uma corrida com características especiais. A tentação de fazer comparações com o que aconteceu em 2020 será inevitável.

Mas haverá muitas diferenças que podem mesmo vir a fazer a diferença: os candidatos estarão quatro anos mais velhos; há duas guerras de grande influência internacional que não havia em 2020 (Ucrânia e Médio Oriente). Por outro lado, já não há pandemia (e poderá, assim, haver uma campanha muito mais no terreno e de proximidade física e muito menos virtual).

Sobra uma dúvida final, que pode mesmo ser decisiva: será isto um mero duelo, ou será que desta vez - por força da alta impopularidade dos dois futuros nomeados dos partidos do sistema - os “terceiros candidatos” poderão atingir votações significativas (nunca a ponto de sonharem com a eleição, mas capazes de determinar quem será o vencedor)?

A hipótese mais óbvia é Robert Kennedy Jr., o bizarro filho de Bobby Kennedy, que começou a corrida no Partido Democrata e a continuou como independente. As sondagens apontam para que possa atingir os dois dígitos, algo que já não acontecia num “terceiro candidato” desde Ross Perot em 1992 (os seus 19% ofereceram a eleição a Bill Clinton, porque foram roubados, quase todos, ao republicano e então presidente incumbente George Bush pai).

Curiosamente, Kennedy pode tirar votos aos dois candidatos: o seu nome de família ainda ressoa em muitos democratas (que temem a idade avançada de Biden); mas a agenda que propala - algures entre o negacionismo das vacinas covid e as conspirações quanto ao envolvimento do complexo militar-industrial nas guerras - surge muito mais próxima do universo Trump e até da propaganda russa.

E ainda há outros dois candidatos outsider que podem atingir uns três a cinco por cento na eleição geral: Jill Stein, do Partido Verde, teve um milhão e meio de votos em 2016 (montante que, a ter ido para Hillary Clinton, com agenda ecológica semelhante, daria facilmente a eleição à democrata e teria evitado a eleição de Donald Trump; Cornel West é um filósofo, ativista e ator popular nos segmentos jovens e de esquerda e pode complicar as contas de Joe Biden para a eleição geral.


Especialista em Política Internacional

QOSHE - Outra vez a Carolina do Sul - Germano Almeida
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Outra vez a Carolina do Sul

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06.02.2024

Tornou-se ideia generalizada que Joe Biden é um candidato fraco para a reeleição: pela idade imprudentemente avançada, pela baixa taxa de aprovação presidencial. O que se passou nos últimos dias, porém, mostrou o contrário. Ou, pelo menos, que nem todos os dados são desfavoráveis ao atual presidente dos EUA.

A vitória esmagadora na Carolina do Sul não foi surpresa: não havia adversário real à altura. Mas os números impressionaram. As sondagens davam entre 75 a 80 por cento. Biden triturou com 96 por cento. Há quatro anos, depois de dois estados de arranque totalmente falhados (quarto no Iowa, quinto no New Hampshire), a Carolina do Sul fez Joe Biden renascer e lançar-se para uma nomeação que, na altura, se afigurava improvável.

Desta vez, o caso é diferente. A nomeação democrata não está em causa. Mas a capacidade de mobilizar quem lhe deu 81 milhões de votos na eleição geral de há quatro anos permanece como uma incógnita.

Já no New Hampshire, onde não concorreu, 65% dos democratas que foram votar escreveram o seu nome no boletim: nada mau para um candidato que parecia estar com dificuldades de mobilização.

Joe Biden sabe que uma das condições essenciais para poder ganhar em novembro é conseguir mobilizar fortemente o voto negro. Isso aconteceu em 2020 (e permitiu, por exemplo, a vitória democrata na Geórgia). Até há dias, parecia não estar a acontecer.

E foi, precisamente, por isso que uma das melhores notícias que as primárias na Carolina do Sul mostraram a Biden foram os 76% de negros no total dos votos antecipados e realizados à distância (13 pontos acima do que tinha acontecido há quatro anos).

Tendo em conta que Joe Biden ganhou o estado com 96% dos votos, é fácil concluir que os negros na Carolina do Sul, tal como o tinham feito em 2020, votaram com larga maioria em Biden. Nesse ano, Biden obteve 61% dos votos negros, que representavam 56% do........

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