As democracias estão sob ataque. É preciso travar o triunfo dos demagogos e dos populistas. Será que ainda vamos a tempo?
Foquemo-nos no caso americano e na interrogação gigantesca que os próximos 222 dias nos reservam até à repetição do duelo Biden vs. Trump, em novembro.

No início de 2010, Barack Obama era presidente dos Estados Unidos e estava a iniciar uma espetacular recuperação económica que levaria ao mais longo período de crescimento e criação de emprego do pós-II Guerra.

A Obama - o presidente do Acordo Nuclear do Irão, do Acordo de Paris, da reaproximação a Cuba, da criação de um sistema abrangente de saúde, da proteção das minorias e da criação de 16 milhões de novos postos de trabalho - sucedeu Trump, um bully egocêntrico e mentiroso, que desrespeitou os outros poderes, colocou o interesse eleitoral pessoal egoísta acima do interesse nacional, desdenhou as instituições que o fizeram eleger.

O período 10/20 foi a década do triunfo dos medíocres e dos mentirosos. Ganharam por terem usado instrumentos mais eficazes na propagação da demagogia pelas redes sociais e pelas novas formas de alavancar a mensagem. Nos EUA, o takeover do trumpismo populista do Partido Republicano foi o culminar de quase uma década de “contágio” do Tea Party.

É muito mais fácil espalhar o medo do que explicar a complexidade das instituições. Nunca precisámos tanto delas, mas nunca foi tão difícil torná-las dominantes.

A “pós-verdade” ganhou ao “reality check”, processo em risco de se tornar prática ultrapassada pelos algoritmos da rede invisível. O que ficou? Uma permanente confusão: “Trump atingiu a presidência sem uma ideologia coerente. Tem múltiplas posições para os mesmos assuntos, conselheiros com perspetivas conflituantes e nenhuma experiência governativa em temas fundamentais. Aqueles que tentem analisar de forma honesta a sua Administração serão obrigados a fazê-lo no meio do caos”, notava Ben Shapiro, na National Review, nos dias seguintes à eleição de 2016.

Não é uma inevitabilidade que os extremos passem a ganhar ao centro moderado. Na eleição geral de 2020, por exemplo, no fim ganharam os moderados.

Contra a corrente.

A grande questão é saber se, com a profusão dos instrumentos de desinformação e a rápida aceleração da Inteligência Artificial, continuará a ser possível que os moderados batam os extremistas.
Um dos aspetos mais perturbadores no anterior mandato presidencial foi a tendência de Trump de se dar bem com líderes muito pouco recomendáveis e destratar aliados permanentes dos EUA (nomeadamente nós, europeus).

No livro Rage (Raiva), de Bob Wooward, isso está destacado. “Quanto piores eles são, melhor me dou com eles”, confessou Trump a Woodward, numa das 17 conversas gravadas que teve com o autor (noutra viria a confessar que já sabia, desde fevereiro de 2020, da gravidade da ameaça do novo Coronavírus, mas que preferiu esconder da população para não criar o pânico). “E com os bons não me entendo”, disse Trump.

Isso mesmo: já dava para desconfiar, mas foi o próprio a admitir - o ex-presidente dos EUA, derrotado a 3 de novembro de 2020, sente-se bem com os líderes autoritários e ditatoriais e sente-se peixe fora de água ao lidar com os líderes democráticos.

Opções e feitios. Do eleitorado também.

Daron Acemoglu, na Foreign Affairs, identificava antes da eleição 2020 o “deslaçar da Democracia americana”: “Os países falham do mesmo modo que os negócios: primeiro lenta e gradualmente, depois subitamente.”

Não aconteceu o pior há quatro anos. Mas foi por pouco - e não foi por falta de tentativa.

E agora?

QOSHE - O sequestro dos demagogos - Germano Almeida
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O sequestro dos demagogos

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28.03.2024

As democracias estão sob ataque. É preciso travar o triunfo dos demagogos e dos populistas. Será que ainda vamos a tempo?
Foquemo-nos no caso americano e na interrogação gigantesca que os próximos 222 dias nos reservam até à repetição do duelo Biden vs. Trump, em novembro.

No início de 2010, Barack Obama era presidente dos Estados Unidos e estava a iniciar uma espetacular recuperação económica que levaria ao mais longo período de crescimento e criação de emprego do pós-II Guerra.

A Obama - o presidente do Acordo Nuclear do Irão, do Acordo de Paris, da reaproximação a Cuba, da criação de um sistema abrangente de saúde, da proteção das minorias e da criação de 16 milhões de novos postos de trabalho - sucedeu Trump, um bully egocêntrico e mentiroso, que desrespeitou os outros poderes, colocou o interesse eleitoral pessoal egoísta acima do interesse nacional, desdenhou as instituições que o........

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