"Aprendemos com a História que não aprendemos com a História" (Hegel)

O novo ano tem mais riscos do que oportunidades. Muito mais perigos do que vantagens potenciais. Ditará o destino da Ucrânia livre e soberana e, por extensão, o futuro do projeto europeu.

Um triunfo imperial de uma Rússia invasora sobre boa parte de território ucraniano não terá só consequências no espaço pós-soviético. Selará o fracasso da Europa como ideia de construção de futuro democrático comum e constituirá ameaça incomportável para a nossa atual arquitetura de segurança.

2024 será o ano da verdade. Não só para a Ucrânia, mas para todos nós. Mesmo quem ainda não se apercebeu disso ou dos que, nas sociedades democráticas e com liberdade de acesso à informação, preferem assumir o papel de "idiotas úteis" e digerem a propaganda russa, encorpada com doses maciças de desinformação, capazes de pôr percentagem significativa de cidadãos europeus e norte-americanos a acreditar que a Rússia foi "forçada" a lançar guerra de larga escala na Ucrânia e que os EUA têm "interesse em vender armas" e por isso a prolongam.

Não. Outra vez, para ficar claro: não! Não é disso que se trata.

Putin decretou a invasão a 24 de fevereiro de 2022 porque achou que a Ucrânia ia ser deixada à sua sorte e capitularia em duas semanas. Os EUA não teriam qualquer interesse numa guerra destas e estavam na direção oposta: tinham saído seis meses antes do Afeganistão de forma traumática, pretendiam concretizar retração estratégica do Leste da Europa e do Médio Oriente e assestar baterias para o Indo-Pacífico para o Mar do Sul da China.

O aumento brutal da venda de armamento é, por isso, uma consequência e não a causa. E o impasse atual em Washington revela que o real problema é o oposto: como convencer os decisores políticos, sobretudo do Partido Republicano, que é do interesse nacional norte-americano prolongar e até reforçar a ajuda militar à Ucrânia?

Sim, com o passar do tempo é cada vez mais difícil explicar isto. Mas exatamente por isso é que se torna ainda mais necessário fazê-lo: ajudar a Ucrânia não é caridade, é contribuir para a defesa do nosso espaço de Segurança e Liberdade. É uma necessidade e trata-se de opção estratégica fundamental. Não fazê-lo em 2024 fará com que norte-americanos e europeus corram sério risco de vir a ter que tomar medidas mais drásticas nos anos seguintes.

Como bem têm dito Biden, Blinken, Austin, senadores democratas como Chris Murphy ou Mark Warner e até o senador republicano Lindsey Graham (cada vez mais isolado no seu partido no tema Ucrânia), "é mais barato dar agora dezenas de milhares de milhões de dólares em ajuda militar aos ucranianos do que convencer, daqui a uns anos, os nossos filhos e netos a irem combater pela Liberdade perante uma Rússia a avançar pela Europa democrática".

Exagero? Antes fosse.

Pensávamos que a era das "boots on the ground" já tinha terminado. Mas há menos de dois anos também achávamos que a era das guerras em espaço europeu por violação de fronteiras entre dois estados tinha acabado na II Guerra Mundial. Pois.

Em 2023, a Rússia continuou a tentar invadir a Ucrânia, mas só teve duas conquistas: Bakhmut e Avdiivka. Terminou o ano a fazer, anteontem, 29 de dezembro, o maior ataque de sempre às cidades ucranianas. A Ucrânia falhou a contraofensiva. Zelensky voltou, há dias, a mostrar que é o líder certo no momento certo e, num contraste absoluto com a distância autoritária de Putin, foi à linha da frente, em Avdiivka, recordar que o destino da Europa democrática se está a jogar na trincheira do leste ucraniano.

"Fadiga de guerra"? Imaginem a que sentem os ucranianos.

Putin, na conferência de Imprensa anual, apareceu fanfarrão e confiante: "Neste momento, fazemos o que queremos na Ucrânia". O presidente russo continua a afirmar que "não vai desistir do que é" seu e jura que estaria pronto para um acordo de cessar-fogo. Leia-se: terminar a guerra, "congelando" os combates ao longo das linhas atuais, o que lhe daria um quinto de um dos maiores países da Europa. Achamos aceitável? Não percebemos que isso seria premiar o agressor e incentivá-lo a tentar fazer isso noutras paragens do seu "estrangeiro próximo"? Já imaginaram o que isso significava para Geórgia, Moldávia ou até para os bálticos?

Resistimos ou capitulamos? 2024 será o ano de todos os dilemas.

Em ano em que quase metade da população mundial vai a votos, é muito provável que os trabalhistas voltem a governar o Reino Unido (pela primeira vez desde o Brexit, mas sem risco de mudanças significativas na política externa, atendendo às posições do moderado Keir Starmer). Putin será reeleito com percentagem provavelmente superior a 80%, Modi continuará a mandar na Índia.

O momento-chave será 5 de novembro de 2024. Se as eleições norte-americanas fossem hoje, Biden possivelmente perderia a reeleição e Trump seria o segundo ex-presidente da história americana a conseguir recuperar o lugar (até agora só logrado por Grover Cleveland, o 22.º e o 24.º presidente dos EUA, no final do século XIX).

Irá Trump promover com o seu amigo Putin uma "paz podre" que obrigue Zelensky a aceitar a cedência de 20% da Ucrânia? Concretizará uma saída americana da NATO? Em julho, quatro meses antes da eleição presidencial nos EUA, a Cimeira de Washington terá papel importante na antecipação desse risco. Até lá, será votado um projeto lei no Congresso, com apoio bipartidário, que obriga a maioria de dois terços para que o presidente possa retirar os Estados Unidos da Aliança Atlântica.

Neste final de 2023, as democracias liberais estão sob ataque de várias direções: da Rússia (pela invasão ilegal, imoral e indecente à Ucrânia), da China (pela ameaça sobre Taiwan), do Irão (através dos seus "proxy" no Médio Oriente que atacam Israel), da Hungria de Orban (a infiltrar argumentos pró-russos na UE), da desinformação e da interferência russa nos EUA (pela via da candidatura presidencial de Trump e da maioria dos republicanos no Congresso).

Em vez de exigirem clara afirmação dos princípios e garantias que orientem as democracias liberais - caminho que tem levado a uma relativa prosperidade pacífica há quase oito décadas -, as sociedades civis de EUA e UE dão crescentes sinais de vacilarem perante o essencial, receosas das consequências que teriam um aumento substancial dos orçamentos de defesa.

Enquanto isso, Putin pôde triplicar os gastos em defesa no orçamento russo em apenas três anos e Trump promete "vingança".

Um novo ano costuma prometer-nos um "amanhã" redentor. Mas o futuro, neste arranque de 2024, ameaça ficar lá atrás.

*Autor de cinco livros sobre presidências dos EUA

QOSHE - O futuro está lá atrás - Germano Almeida
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O futuro está lá atrás

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31.12.2023

"Aprendemos com a História que não aprendemos com a História" (Hegel)

O novo ano tem mais riscos do que oportunidades. Muito mais perigos do que vantagens potenciais. Ditará o destino da Ucrânia livre e soberana e, por extensão, o futuro do projeto europeu.

Um triunfo imperial de uma Rússia invasora sobre boa parte de território ucraniano não terá só consequências no espaço pós-soviético. Selará o fracasso da Europa como ideia de construção de futuro democrático comum e constituirá ameaça incomportável para a nossa atual arquitetura de segurança.

2024 será o ano da verdade. Não só para a Ucrânia, mas para todos nós. Mesmo quem ainda não se apercebeu disso ou dos que, nas sociedades democráticas e com liberdade de acesso à informação, preferem assumir o papel de "idiotas úteis" e digerem a propaganda russa, encorpada com doses maciças de desinformação, capazes de pôr percentagem significativa de cidadãos europeus e norte-americanos a acreditar que a Rússia foi "forçada" a lançar guerra de larga escala na Ucrânia e que os EUA têm "interesse em vender armas" e por isso a prolongam.

Não. Outra vez, para ficar claro: não! Não é disso que se trata.

Putin decretou a invasão a 24 de fevereiro de 2022 porque achou que a Ucrânia ia ser deixada à sua sorte e capitularia em duas semanas. Os EUA não teriam qualquer interesse numa guerra destas e estavam na direção oposta: tinham saído seis meses antes do Afeganistão de forma traumática, pretendiam concretizar retração estratégica do Leste da Europa e do Médio Oriente e assestar baterias para o Indo-Pacífico para o Mar do Sul da China.

O aumento brutal da venda de armamento........

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