Defender a Democracia não é “ser parcial” ou “escolher um lado”: perante a ameaça autocrática, é mesmo o único caminho possível para quem dá valor à Liberdade.

A Rússia de Putin anda há anos a minar as democracias ocidentais, pela via dos ciberataques, da desinformação e da estratégia de garantir o apoio político de elementos destacados dos respetivos Parlamentos. Os recentes avisos das secretas polaca e checa foram esclarecedores.

Através do seu poderoso aparelho de propaganda, Putin tenta espalhar para espaço europeu o que impõe pela força, coação e medo em território russo: a ideia difusa de que “tudo é possível e nada é verdade.”

A aproximação das eleições europeias, em contexto de agravamento da agressão russa na Ucrânia e momento de grave impasse no apoio ocidental a Kiev, coloca os próximos dois meses como fase particularmente sensível.

A perspetiva de grande subida dos partidos radicais e/ou extremistas, e consequente perda de influência dos grandes partidos tradicionais, que sustentaram nas últimas décadas o aprofundamento do projeto europeu, reforça a complexidade do que pode acontecer.

Vejamos o que se passou a 13 de março passado em Paris, na Assembleia Nacional Francesa, aquando da votação do acordo de segurança celebrado em fevereiro entre Zelensky e Macron: a aprovação só foi possível pelos partidos moderados, mas contou com a rejeição da esquerda radical da França Insubmissa e o Partido Comunista (ambos pró-Rússia de Putin) e a abstenção da extrema-direita (financiada por Putin há vários anos).

Este quadro também se reforça na atual política alemã: a coligação tripartida no Governo (sociais-democratas, liberais e verdes) é pró-ucraniana, mas arrasta-se em divergências internas sobre enviar ou não os Taurus; já a AfD de extrema-direita (20% em algumas sondagens) é um dos partidos mais pró-putinistas do espetro europeu, enquanto o novo partido que agrega a extrema-esquerda alemã, liderado por Sahra Wagenknecht (formado há apenas três meses e já com 5% nas sondagens) é sonoramente contra o envio de ajuda militar à Ucrânia e surfa a narrativa de que o Ocidente incita a Ucrânia a fazer guerra à Rússia, num argumento de inversão que, em tudo, nos faz lembrar o que dizem Putin, Lavrov ou Peskov.

A apatia dos moderados contrasta com o entusiasmo dos radicais. Temos de encontrar soluções para essa contradição. Algo parecido com a ideia de Macron de ser “radicalmente moderado”? Talvez.

Como, de forma certeira, a Fernanda Câncio escreveu neste jornal no passado dia 26, “a democracia é a sua pior inimiga - a democracia”. Cito, assinando por baixo: “Numa sociedade sem imprensa nem debate político livre não há crime, nem corrupção, nem serviços públicos deficientes, nem ineficácia da Justiça, nem emigração em massa, ou miséria sequer. Pelo contrário, em democracia, tende-se a só apontar o que corre mal - mesmo quando é consequência do que corre bem”.

Temo que venha a ser cada vez mais difícil de explicar isto às pessoas. Mas não teremos alternativa. A tentação autocrática é a de lançar soluções simples para problemas complexos.

Para Putin, que tem via aberta para se manter no Kremlin até 2036, ou Xi (que poderá manter-se no poder em Pequim até 2034), o reforço do poder ditatorial facilita a imposição de uma “verdade” ditada pela linguagem e pela ausência de Liberdade.

Já no nosso espaço demoliberal, Biden está longe de saber se renova o seu mandato presidencial em novembro, Macron estará de saída em 2027 - e há risco real de que Trump e Marine Le Pen, dois preferidos de Putin, sejam os sucessores em Washington e Paris.

6 de janeiro de 2021 e tudo o que aconteceu a seguir com a base de Trump mostrou-nos que já não chega derrotar os populistas autocratas em eleições. Passou a ser necessária uma segunda garantia: a de que as instituições democráticas estão suficientemente blindadas para resistirem às tentativas de golpe de quem não quer abdicar do poder.

Relatório recente do European Council on Foreign Relations desmonta a ideia de que a grande obsessão do eleitorado europeu é o receio da imigração. Questões como as alterações climáticas, a defesa da Ucrânia ou a crise económica global merecem maior atenção e preocupação dos europeus.

As democracias estão sob ataque e temos de saber reagir a isso. Sem diálogo e consenso não há sociedades democráticas. Isso implica cedência, compromisso e tolerância. No dia em que considerarmos que o nosso adversário não tem direito a existir, a Democracia acaba.

Como Bogart para Bergman, na cena final do Casablanca, “teremos sempre Paris”. O que nunca poderemos ter é Moscovo, pelo menos na forma atual do regime de Putin funcionar.

QOSHE - Nunca teremos Moscovo - Germano Almeida
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

Nunca teremos Moscovo

8 0
02.04.2024

Defender a Democracia não é “ser parcial” ou “escolher um lado”: perante a ameaça autocrática, é mesmo o único caminho possível para quem dá valor à Liberdade.

A Rússia de Putin anda há anos a minar as democracias ocidentais, pela via dos ciberataques, da desinformação e da estratégia de garantir o apoio político de elementos destacados dos respetivos Parlamentos. Os recentes avisos das secretas polaca e checa foram esclarecedores.

Através do seu poderoso aparelho de propaganda, Putin tenta espalhar para espaço europeu o que impõe pela força, coação e medo em território russo: a ideia difusa de que “tudo é possível e nada é verdade.”

A aproximação das eleições europeias, em contexto de agravamento da agressão russa na Ucrânia e momento de grave impasse no apoio ocidental a Kiev, coloca os próximos dois meses como fase particularmente sensível.

A perspetiva de grande subida dos partidos radicais e/ou extremistas, e consequente perda de influência dos grandes partidos tradicionais, que sustentaram nas últimas décadas o aprofundamento do projeto europeu, reforça a complexidade do que pode acontecer.

Vejamos o que se passou a 13 de março........

© Diário de Notícias


Get it on Google Play