Quando se fala em eleições presidenciais norte-americanas é costume afirmar-se que "a próxima eleição é a mais importante de sempre". Sucede que a próxima eleição será mesmo a mais importante de sempre.

Estão em jogo os alicerces da democracia dos EUA e está também em jogo o futuro das democracias liberais, na sua capacidade de continuarem a assumir uma liderança global que mantenha uma ordem coerente e estável.

A Ucrânia democrática e pró-europeia não resistirá ao que um regresso de Trump à Casa Branca vai implicar. A agressão russa será cada vez mais real e isso terá implicações no futuro da Europa. A NATO, desta vez, pode mesmo perder o seu principal fundador e contribuinte. Perde o Ocidente, ganha a "alternativa autocrática".

O que é que aconteceu ao "país excecional e indispensável"? Como foi possível que a democracia que encarámos como a "luz que iluminava a colina", se tenha deixado minar pelas garras da desinformação, do negacionismo e da polarização extrema?

Como é possível que Donald Trump, o Presidente que incitou à insurreição, seja o mais bem colocado para vencer as presidenciais de 5 de novembro de 2024? Mas, democratas, isto também é convosco: como é possível que não tenham antecipado que a idade do Presidente Biden pudesse vir a ser comprometedora para a reeleição? Não havia mesmo espaço para construir uma alternativa vencedora (Newsom, Whitmer, Buttigieg)?

Em The Hill We Climb (A Colina que Escalamos), poema lido na tomada de posse de Joe Biden, em momento contrastante, entre o choque - duas semanas após a invasão do Capitólio - e o alívio pela derrota de Trump, Amanda Gorman exortava: "Vamos reconstruir, reconciliar, recuperar. (...) Quando chegar a hora, vamos sair das sombras, sem frio e sem medo. / Nasce um novo dia que deixamos livre. Pois sempre haverá Luz. / se ao menos tivermos a coragem de vê-la/ se ao menos tivermos a coragem de sê-la." Nada disso aconteceu no mandato presidencial que se seguiu ao impensável consulado Trump. Biden ganhou pela decência - mas está a falhar no julgamento das perceções.

David Bowie, autor de This Is Not America, morreu onze meses antes da eleição de Trump, em 2016. Se ainda cá estivesse, talvez não acreditasse que o impensável poderia estar tão perto de se repetir. Mesmo depois de 6 de janeiro de 2021. Isto não pode ser a América.

Injustiça? Tal conceito não existe ao nível presidencial. Se os cidadãos sentem fracasso e fraqueza do Presidente, a culpa não é dos cidadãos que não sabem avaliar - é do Presidente, que não é capaz de entregar. No seu estilo de "americano médio", filho do Midwest (nasceu em Scranton, Pensilvânia), Biden tenta chegar a quem lhe deu a vitória à tangente nos estados decisivos e, quatro anos antes, havia preferido Trump a Hillary. Mas não está fácil: no Wisconsin (onde Trump bateu Hillary em 2016 por 23 mil votos e Biden ganhou a Trump em 2020 por 20 mil), Donald tem vantagem entre quatro e oito pontos sobre Joe; o mesmo na Pensilvânia (onde Trump bateu Hillary em 2016 por 43 mil votos e Biden ganhou a Trump em 2020 por 82 mil) e onde agora Trump lidera por um a três pontos. E até no Michigan (onde Trump bateu Hillary em 2016 por 10 mil votos e Biden ganhou a Trump em 2020 por mais confortáveis 155 mil), Donald lidera com vantagens que oscilam entre os quatro e os dez pontos percentuais.

Sim, vai ser uma corrida apertada - como tem sido sempre, desde que em 2000 Bush só selou o triunfo na Florida contra Gore por intervenção do Supremo. Mas sejamos claros: se as eleições fossem hoje, era muito provável que Trump conseguisse mesmo bater Biden.

Onde Joe tem de melhorar? Na mobilização da base democrata. Nos jovens (mais de metade deles desejava outro candidato). Nas mulheres suburbanas (que o preferiram claramente em 2020 e agora dão vantagem a Trump). Nos negros (que lhe deram uma histórica vitória na Geórgia, que parecia selar uma mudança no mapa eleitoral da América). Nos latinos (decisivos para a vitória no Arizona). Até nos independentes (onde Biden ganhou em 2020 por 58/42 e agora Trump lidera, com percentagem maior).

O turnout muitíssimo elevado de 2020 (67%) revelou dois movimentos contraditórios: fortíssima mobilização MAGA (Trump aumentou em quase dez milhões a sua votação de 2016), mas ainda maior mobilização anti-Trump que deu a Biden a maior votação da história da democracia norte-americana: 81,3 milhões de sufrágios.

Trump nem precisa de ter tantos votos como quando teve quando perdeu há três anos. Basta que se mantenha a falta de entusiasmo de boa parte do eleitorado Biden-2020 para que o Presidente democrata se arrisque a perder algures entre 10, 15 ou até mesmo 20 milhões de votos. Mais do que para a persuasão, teremos de olhar para a mobilização.

Biden estava certo quando, na posse, sentenciou: "Nos Estados Unidos da América, os políticos não tomam o poder: é o povo que o concede. Na batalha pela alma da América, a democracia prevaleceu." O grande problema é que quase todos os indicadores, a 11 meses da próxima eleição presidencial, mostram que, apesar da democracia ter prevalecido, não conseguiu conquistar a alma da América.

A América deixou de ter common ground. Pensado para funcionar sustentado em grandes consensos bipartidários, o sistema político de Washington está quebrado. Mais do que disfuncional, caminha para um comportamento autofágico.

Esta será uma corrida singular: oporá o atual ao anterior Presidente dos EUA. Será uma dupla corrida à reeleição. Trump prepara-se para obter pela terceira vez consecutiva a nomeação republicana - originalidade que nos ajuda a compreender que Donald se tornou um "chefe de tribo", endeusado pelos seguidores, que querem tudo menos contestá-lo ou depô-lo. Não ganhou? Declara-se fraude. A justiça tem provas contra ele? Culpa-se a justiça e iliba-se o culpado. Trump é que nunca é responsável para quem se entregou ao seu "mantra" populista, identitário e vingativo.

Donald secou rivais internos (DeSantis tem feito campanha falhada; Ramaswamy só deu para animar os debates). Na zona mais institucional ou menos radical, Pence durou pouco, Christie está em negação sobre já não ser o popular governador da Nova Jérsia que em 2012 se bateu pelos seus na supertempestade Sandy. Resta Nikki Haley, que até serviu na Administração Trump e se tem destacado como única candidata nas primárias republicanas com discurso que junta responsabilidade e tração. No New Hampshire, um dos estados de arranque, aparece a apenas quatro pontos de Donald (33/29) e com larga vantagem sobre todos os outros. Haverá esperança de não voltarmos a ver Trump na eleição geral? Ténue, muito ténue.

David Bowie, autor de This Is Not America, morreu onze meses antes da eleição de Trump, em 2016. Se ainda cá estivesse, talvez não acreditasse que o impensável poderia estar tão perto de se repetir. Mesmo depois de 6 de janeiro de 2021. Isto não pode ser a América.

*Autor de cinco livros sobre presidências dos EUA

QOSHE - Isto não é a América - Germano Almeida
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Isto não é a América

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24.12.2023

Quando se fala em eleições presidenciais norte-americanas é costume afirmar-se que "a próxima eleição é a mais importante de sempre". Sucede que a próxima eleição será mesmo a mais importante de sempre.

Estão em jogo os alicerces da democracia dos EUA e está também em jogo o futuro das democracias liberais, na sua capacidade de continuarem a assumir uma liderança global que mantenha uma ordem coerente e estável.

A Ucrânia democrática e pró-europeia não resistirá ao que um regresso de Trump à Casa Branca vai implicar. A agressão russa será cada vez mais real e isso terá implicações no futuro da Europa. A NATO, desta vez, pode mesmo perder o seu principal fundador e contribuinte. Perde o Ocidente, ganha a "alternativa autocrática".

O que é que aconteceu ao "país excecional e indispensável"? Como foi possível que a democracia que encarámos como a "luz que iluminava a colina", se tenha deixado minar pelas garras da desinformação, do negacionismo e da polarização extrema?

Como é possível que Donald Trump, o Presidente que incitou à insurreição, seja o mais bem colocado para vencer as presidenciais de 5 de novembro de 2024? Mas, democratas, isto também é convosco: como é possível que não tenham antecipado que a idade do Presidente Biden pudesse vir a ser comprometedora para a reeleição? Não havia mesmo espaço para construir uma alternativa vencedora (Newsom, Whitmer, Buttigieg)?

Em The Hill We Climb (A Colina que Escalamos), poema lido na tomada de posse de Joe Biden, em momento contrastante, entre o choque - duas semanas após a invasão do Capitólio - e o alívio pela derrota de Trump, Amanda Gorman exortava: "Vamos reconstruir, reconciliar, recuperar. (...) Quando chegar a hora, vamos sair das........

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