“Neste mundo imperfeito, a dissuasão só pode surgir da força.”

(General Lloyd Austin,
secretário da Defesa dos EUA)

Vivemos na era da confrontação. Esqueçam os consensos e os compromissos: o momento, nas relações internacionais, é de profunda e tensa competição entre as potências.

A invasão russa da Ucrânia; as rotas dos cereais, os desafios do clima e da Inteligência Artificial, a volatilidade na energia e na inflação, a Guerra Israel/Hamas e o aproveitamento do perturbador continental Irão para criar desestabilização; a ameaça da China sobre Taiwan; as desigualdades de rendimentos: quase tudo parece agravar o que deveria ser um caminho de dissuasão e entendimento.

Enquanto a China tem um projeto de expansão a longo prazo, os Estados Unidos têm optado pelo retraimento estratégico. Volto ao secretário da Defesa, general Lloyd Austin, pela clareza do diagnóstico: “Os EUA estão num ponto crucial com a China e precisarão de força militar para garantir que os valores americanos, e não os de Pequim, definam as normas globais no século XXI.”

Biden garantiu que a América tem poder para liderar o apoio em duas guerras ao mesmo tempo. Mas cuidado: não disse três.

O triunfo de William Lai Ching-Te nas eleições do fim de semana passado aumentou receios de uma futura (ainda que não iminente) ação militar chinesa na ilha. Será um dos maiores testes à resistência das democracias em relação às ameaças autocráticas.

Taiwan é a tensão mais evidente. A escalada retórica é cada vez mais acompanhada de tensão militar. Estados Unidos e China vão-se emaranhando num jogo de poker que ameaça o futuro da ilha. Xi Jinping fala em “tarefa histórica de reunificação que será definitivamente cumprida”, mesmo jurando que a prioridade é assegurá-la “de forma pacífica”. Joe Biden avisa o homólogo chinês que deve “cumprir o acordo para Taiwan e nada fazer fora disso”.

O momento da verdade sobre Taiwan está a chegar. A ambiguidade estratégica manteve a paz durante décadas. Mas um perigoso momento de clareza pode estar a aproximar-se.

Não é provável que tal aconteça já neste ano de 2024, mas é mais possível que possa ocorrer algures até 2027.

A Administração Biden tem subido o tom de aviso a Pequim sobre o que poderá acontecer em caso de invasão da ilha. Pelo meio da tensão político-militar, há um dado económico que se revela estratégico: Taiwan é o maior produtor de semicondutores do mundo, com dois terços do total global (só a TSMC controla perto de 50%, com o domínio dos microchips tecnologicame\nte mais avançados, 90% do total mundial nesse segmento de ponta). Nem EUA, nem China estarão dispostos a abdicar desta posição estratégica - ainda que uma das políticas protecionistas da Administração Biden passe pela aposta nos semicondutores em estados como o Ohio.

Se há tema em que houve mais continuidade que rutura entre as presidências Trump e Biden, esse tema é, certamente, a necessidade de Washington conter a ascensão da China.

A desconfiança dos EUA em relação aos chineses está em máximos históricos. Dois em cada três norte-americanos têm uma opinião negativa sobre a China. Há cinco anos, eram menos de metade. Há duas décadas, o PIB chinês valia 12% do norte-americano. Hoje valerá 67%.

Enquanto a China tem um projeto de expansão estratégico a longo prazo (“Uma Faixa, Uma Rota”), os Estados Unidos têm vindo a optar, nas últimas duas décadas e já com quatro presidentes diferentes (Bush filho, Obama, Trump e agora Biden), por um retraimento estratégico.

A China tem o seu próprio objetivo: 2049, ano do centenário da criação da República Popular. Ser a maior potência mundial em todos os domínios por essa altura é uma fasquia que muitos consideram inevitável. Faltam duas décadas e meia.

Mas o último ano não contribuiu para esse caminho aparentemente inelutável. O crescimento foi de 5,2% - o pior desempenho em quatro décadas, com exceção dos anos da pandemia (em 2022, ainda em fase covid, tinha sido 3%). O desempenho de 2023 só passou os 5% graças a um quarto trimestre acima do esperado. O setor do imobiliário, que concentra 70% da riqueza das famílias chinesas, continua a afetar a confiança dos consumidores.

Em 2023, a população chinesa diminuiu pelo segundo ano consecutivo. A China terminou 2023 com 1409,67 milhões de habitantes, contra 1411,75 milhões no final do ano anterior. A diminuição de 2,08 milhões de pessoas representa uma queda homóloga de 0,14 % e confirma a tendência negativa que começou em 2022 e para a qual as autoridades chinesas têm vindo a alertar há anos. Estima-se que, em 2035, haverá 400 milhões de pessoas com mais de 60 anos na China, o que representa mais de 30% da população chinesa.

O ano de 2023 foi, de resto, o momento em que a Índia ultrapassou a China como o país mais populoso do mundo.

“O tempo vai provar que a China está do lado certo da História”, jura, num certo tom de ameaça, Zhao Lijian, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês.

Os EUA têm informações de que o Governo chinês está a considerar fornecer à Rússia drones e munições para uso na guerra na Ucrânia. E o aviso não podia ser mais claro: se a China enviar armas para a Rússia vai ter problemas sérios. Washington “não vai hesitar em sancionar empresas e indivíduos chineses se fornecerem armas a Moscovo”, diz o conselheiro sénior do Departamento de Estado dos EUA, Ned Price. A China ficou “muito claramente” do lado da Rússia no conflito com a Ucrânia: “A China é um dos países no mundo que, se tentassem acabar com esta guerra, teriam uma influência significativa com a Federação Russa e com outros países importantes. Mas claramente tomou um partido.”

O comércio entre China e Rússia aumentou 26,3% em 2023 - um nível recorde. No ano passado, China e Rússia negociaram 240,1 mil milhões de dólares em bens e serviços. Ao mesmo tempo, as trocas comerciais chinesas com os Estados Unidos diminuíram pela primeira vez desde 2019. Em 2023, as trocas comerciais entre China e Estados Unidos ascenderam a 664,4 mil milhões de dólares, uma queda de 11,6%, em relação ao ano anterior. A última queda anual foi em 2019, como resultado da guerra comercial lançada contra Pequim por Trump.

Três obstáculos contrariam a tese de pujança chinesa: o declínio do crescimento populacional (que ameaça a fórmula assente na explosão do consumo interno para reduzir a dependência de Pequim das exportações); o crescimento económico abaixo dos valores que sustentaram o modelo chinês nas últimas três décadas (já se notava antes da pandemia, agravou-se a partir dela); danos reputacionais pelo modo como terão ocultado o risco da covid-19.

A China quer ser o motor de uma nova ordem internacional, menos ditada pelos EUA, menos liberal e mais focada nos valores e interesses das potências revisionistas. Mas a tese de uma ascensão imparável das ambições globais de Xi Jinping necessita de uma profunda atualização.


Especialista em Política Internacional

QOSHE - Até a crescer a China é ambígua - Germano Almeida
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Até a crescer a China é ambígua

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22.01.2024

“Neste mundo imperfeito, a dissuasão só pode surgir da força.”

(General Lloyd Austin,
secretário da Defesa dos EUA)

Vivemos na era da confrontação. Esqueçam os consensos e os compromissos: o momento, nas relações internacionais, é de profunda e tensa competição entre as potências.

A invasão russa da Ucrânia; as rotas dos cereais, os desafios do clima e da Inteligência Artificial, a volatilidade na energia e na inflação, a Guerra Israel/Hamas e o aproveitamento do perturbador continental Irão para criar desestabilização; a ameaça da China sobre Taiwan; as desigualdades de rendimentos: quase tudo parece agravar o que deveria ser um caminho de dissuasão e entendimento.

Enquanto a China tem um projeto de expansão a longo prazo, os Estados Unidos têm optado pelo retraimento estratégico. Volto ao secretário da Defesa, general Lloyd Austin, pela clareza do diagnóstico: “Os EUA estão num ponto crucial com a China e precisarão de força militar para garantir que os valores americanos, e não os de Pequim, definam as normas globais no século XXI.”

Biden garantiu que a América tem poder para liderar o apoio em duas guerras ao mesmo tempo. Mas cuidado: não disse três.

O triunfo de William Lai Ching-Te nas eleições do fim de semana passado aumentou receios de uma futura (ainda que não iminente) ação militar chinesa na ilha. Será um dos maiores testes à resistência das democracias em relação às ameaças autocráticas.

Taiwan é a tensão mais evidente. A escalada retórica é cada vez mais acompanhada de tensão militar. Estados Unidos e China vão-se emaranhando num jogo de poker que ameaça o futuro da ilha. Xi Jinping fala em “tarefa histórica de reunificação que será definitivamente........

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