Vinicius de Moraes escreveu sobre o amor que será “eterno enquanto dura”. Essa dura contradição tem de se aplicar ao momento atual na Europa.

A ilusão da paz perpétua, supostamente garantida pós a queda do Muro de Berlim, já estava a desvanecer-se na década passada (crise financeira, anexação russa da Crimeia, ascensão dos populismos no coração das democracias liberais), mas terminou em definitivo a 24 de fevereiro de 2022.

Donald Tusk voltou a avisar: “Já não estamos no pós-II Guerra. Estamos numa fase pré-guerra. Não quero assustar ninguém, mas a guerra já não é um conceito do passado. É real e começou há mais de dois anos.”

O acordar geoestratégico está a ser duro para a Europa. Ainda estamos em negação.
Queremos acreditar que o pior não irá acontecer. Desejamos ardentemente que Putin se ficará pela Ucrânia (apesar de nada no seu comportamento imperial da última década e meia, desde a Geórgia em 2008, o faça indicar).

Convém que não caiamos em ilusões sucessivas: há dois anos e um mês, muitos tiveram a ilusão de que não ia haver guerra, que Putin não cometeria o devaneio de tentar invadir a Ucrânia toda; nos dias e semanas seguintes, muitos tiveram outra ilusão, a de que o conflito seria limitado e rápido; com o prolongar da guerra, alimenta-se outra ilusão, a de negociar com o agressor, cedendo-lhe o território que ocupou a troco de uma suposta paz.

Os dados estão à vista e não seria inteligente não os interpretarmos. É que nem sequer é difícil.

Há vários anos que a Rússia de Putin tenta minar o projeto europeu, as democracias na Europa e a democracia norte-americana. As próximas eleições europeias, a realizar dentro de menos de dois meses e meio, serão mais uma prova do algodão.

Uma rede de espionagem russa foi desmantelada, na passada quarta-feira, pelos serviços de contraespionagem polacos ABW, em coordenação com instituições de outros países da União Europeia, especialmente a República Checa. O objetivo da rede de espionagem russa era “enfraquecer a posição da Polónia na cena internacional, desacreditar a Ucrânia e a imagem das instituições da União Europeia”. Durante a operação, a ABW realizou buscas em Varsóvia e Tychy.

A meta da rede visada pela operação era “alcançar os objetivos de política externa do Kremlin, em particular enfraquecer a posição da Polónia na cena internacional, desacreditar a Ucrânia e a imagem das instituições da União Europeia”, apontam os ABW. Estes objetivos deveriam ser alcançados através de um website pró-Rússia intitulado voice-of-europe.eu.

A operação da ABW é também o resultado de uma acusação, em janeiro, de um polaco suspeito de espiar para os serviços secretos russos. “O homem, infiltrado entre parlamentares polacos e europeus, executou tarefas encomendadas e financiadas por colaboradores dos serviços de inteligência russos”, nomeadamente atividades de propaganda, desinformação e provocação política, destinadas a “construir zonas de influência russas na Europa”.

Também a República Checa avançou que os seus espiões descobriram que a rede estava a espalhar propaganda russa através do site de notícias Voice of Europe, com sede em Praga.

O Parlamento de Praga decretou, há uma semana, que o regime de Moscovo é terrorista na medida em que procura alargar a esfera de influência à Ucrânia e a “outros países europeus”. O texto refere que a República Checa tem “interesse em assegurar que a guerra de Putin falhe” e aponta a Rússia como a “maior ameaça à segurança interna” do país. “A interrupção do fornecimento de equipamento militar à Ucrânia levaria, pelo contrário, à conquista e à devastação da Ucrânia pelo regime ‘terrorista’ russo”.

O primeiro-ministro da Bélgica apelou ao Parlamento Europeu para lançar uma investigação sobre todas estas alegações de supostos subornos russos a legisladores da UE.

“A Rússia está a preparar-se para um longo conflito com o Ocidente.” O alerta foi feito, há dias, pelo primeiro-ministro finlandês, Petteri Orpo, numa reação ao anúncio de Putin de que irá ordenar o reforço de tropas russas para a extensa fronteira com russo-finlandesa.

Zelensky, à CBS, foi mais longe: “Para ele [Putin], somos um satélite da Federação Russa. Neste momento, somos nós, depois o Cazaquistão, depois os Estados Bálticos, depois a Polónia, depois a Alemanha. Pelo menos metade da Alemanha. Mesmo amanhã, os mísseis podem voar para qualquer Estado. Esta agressão, e o Exército de Putin, podem chegar à Europa, e então os cidadãos dos Estados Unidos, os soldados dos Estados Unidos, terão de proteger a Europa porque são membros da NATO.”

E quanto aos que se dizem fatigados com a guerra, o presidente da Ucrânia lembrou: “Só estão cansados aqueles que não estão em guerra, que não sabem o que é a guerra e que nunca perderam os seus filhos.”

Não devemos desvalorizar os sinais russos de pretender alargar a agressão à Moldávia.

Nas últimas semanas, a Rússia atacou com cada vez maior frequência nas zonas fronteiriças da Ucrânia com a Moldávia e a Roménia. Fragmentos de um drone apareceram na madrugada de sexta-feira numa quinta em território romeno. E os ataques às centrais hidroelétricas de Kaniv e Dnister, coladas ao Rio Dnister, que separa território da Ucrânia com o da Moldávia, aumentam os receios de que Putin está a testar a reação moldava e, sobretudo, que tipo de proteção a UE e a NATO dariam a Chisinau, em caso de invasão russa.

Os bálticos estão, a cada dia que passa, a preparar-se para um cenário de guerra. Letónia e Estónia preparam o regresso do Serviço Militar Obrigatório e impostos para compra de armas. A norte, a Finlândia estuda a criação de bunkers para a população.

Zelensky diz que o número de munições da Ucrânia é “humilhante”. Von der Leyen admite “mil milhões” para a Ucrânia com lucros de bens russos. Scholz apoia a compra de armas para a Ucrânia com ativos russos congelados. Enquanto isso, a missão da NATO no Báltico é “determinação coletiva” em dissuadir a Rússia.

As peças demoram a mover-se. Mas estão a mover-se.

A Rússia vetou, pela primeira vez em 14 anos, uma resolução do Conselho de Segurança da ONU que prolongaria até 2025 o mandato do painel de peritos que auxilia o Comité de Sanções à Coreia do Norte. A resolução, redigida pelos Estados Unidos da América, recebeu 13 votos a favor, a abstenção da China e o voto contra da Rússia. O projeto visava estender o mandato do painel de peritos até 30 de abril de 2025 e solicitava aos especialistas que apresentassem de forma confidencial o seu relatório intercalar ao Conselho.

O sinal é claro: Moscovo virou para Pyongyang, depois da parceria militar entre Rússia e Coreia do Norte, que tem sido decisiva para que as tropas russas tenham grande supremacia ao nível das munições disponíveis no teatro ucraniano. O alinhamento autocrático é tão evidente que só não o vê quem não quiser.

Mas há mais sinais de escalada da agressão russa: Putin prepara nova mobilização, dois novos Exércitos com total de meio milhão de homens e isenta de responsabilidade criminal atos de russos no teatro ucraniano. O “Estado de Guerra” (expressão para já usada só por Peskov, ainda não por Putin”) poderá ir a votação na Duma nas próximas semanas.

QOSHE - A paz, afinal, não era perpétua - Germano Almeida
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A paz, afinal, não era perpétua

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31.03.2024

Vinicius de Moraes escreveu sobre o amor que será “eterno enquanto dura”. Essa dura contradição tem de se aplicar ao momento atual na Europa.

A ilusão da paz perpétua, supostamente garantida pós a queda do Muro de Berlim, já estava a desvanecer-se na década passada (crise financeira, anexação russa da Crimeia, ascensão dos populismos no coração das democracias liberais), mas terminou em definitivo a 24 de fevereiro de 2022.

Donald Tusk voltou a avisar: “Já não estamos no pós-II Guerra. Estamos numa fase pré-guerra. Não quero assustar ninguém, mas a guerra já não é um conceito do passado. É real e começou há mais de dois anos.”

O acordar geoestratégico está a ser duro para a Europa. Ainda estamos em negação.
Queremos acreditar que o pior não irá acontecer. Desejamos ardentemente que Putin se ficará pela Ucrânia (apesar de nada no seu comportamento imperial da última década e meia, desde a Geórgia em 2008, o faça indicar).

Convém que não caiamos em ilusões sucessivas: há dois anos e um mês, muitos tiveram a ilusão de que não ia haver guerra, que Putin não cometeria o devaneio de tentar invadir a Ucrânia toda; nos dias e semanas seguintes, muitos tiveram outra ilusão, a de que o conflito seria limitado e rápido; com o prolongar da guerra, alimenta-se outra ilusão, a de negociar com o agressor, cedendo-lhe o território que ocupou a troco de uma suposta paz.

Os dados estão à vista e não seria inteligente não os interpretarmos. É que nem sequer é difícil.

Há vários anos que a Rússia de Putin tenta minar o projeto europeu, as democracias na Europa e a democracia norte-americana. As próximas eleições europeias, a realizar dentro de menos de dois meses e meio, serão mais uma prova do algodão.

Uma rede de espionagem russa foi desmantelada, na passada quarta-feira, pelos........

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