Estamos já a viver uma nova ordem internacional? Possivelmente não. Ainda não. Onde estamos então? Viveremos uma fase final da ordem unipolar americana? Ou já se apronta uma nova ordem multipolar, com protagonistas autocráticos como a China, a Rússia ou o Irão a aproveitarem-se do suposto declínio americano e da contínua irrelevância europeia?

Fomo-nos habituando a ouvir que a mudança é o traço comum da sociedade contemporânea. E que essa mudança é cada vez mais rápida e acelerada. O que não estaríamos, certamente, a contar era que, em menos de dois anos, essa mudança nos mostrasse a primeira invasão de território de um país sobre outro em espaço europeu desde a II Guerra Mundial; a maior guerra na história de Israel, país marcado por várias guerras existenciais com os seus vizinhos ameaçadores; que os norte-americanos viessem a colocar como possível futuro presidente um ex-presidente instável, incoerente e que faz da mentira o seu principal argumento político.

Uma análise fria dos principais fatores que dominam o tabuleiro mundial apontam-nos para que a estabilidade está a perder para o caos. A Liberdade está a perder para o Autoritarismo. O ‘eu’ e o ‘nós’ estão a prevalecer perante o receio do ‘outro’ e ‘eles’. A Esperança está a perder para o Medo.

Estamos a caminhar para uma era de desagregação, num ambiente de crescente conflito entre as potências. E nesse ambiente as regras de boa convivência ficam em perigo e sobrevem a necessidade da força.

A invasão russa da Ucrânia e o ressurgir explosivo da Guerra Israel/Hamas, na versão mais grave, perigosa e mortífera de um conflito na região pelo menos desde 1973, deram à Presidência Biden duas inesperadas oportunidades, com muitos riscos inerentes é claro, para uma espécie de regresso à liderança em dois palcos onde os EUA assumiram lideranças decisivas, mas de onde, nos últimos anos, tinham anunciado uma retração estratégica: no Leste da Europa e no Médio Oriente.

Muitos apontam o momento de maior falhanço e fraqueza da política externa de Obama não ter sido consequente na Síria com a exigência do cumprimento de Assad da “linha vermelha” de não usar armas químicas. Há uma década, por outubro de 2013, o então Presidente Obama, já depois de ter autorização bipartidária no Congresso para usar a força contra o regime de Assad, aceitou mediação de Putin e voltou atrás na decisão, acreditando que seria melhor evitar intervenção militar americana e confiar na ponte vinda do Kremlin.

Os anos a seguir viriam a mostrar-nos que nunca foi prudente, muito menos inteligente, acreditar nas boas intenções de Vladimir Putin. A Rússia fez na Síria um ensaio geral macabro para o que viria a fazer na Ucrânia, a partir de fevereiro de 2022 até hoje. Já na altura, com a cumplicidade do Irão, hoje aliado fundamental de Moscovo no fornecimento de drones e parceiro mais ou menos disfarçado no incitamento ao Hamas.

Biden trabalhou no restabelecimento de laços com os aliados europeus. Os eleitores americanos têm dito de forma consistente que deixaram de querer que os EUA sejam “o polícia do mundo”. Mas também têm dito, nestes quase dois anos de invasão anacrónica que a Rússia de Putin decidiu fazer, que a Ucrânia merece ser ajudada e que isso até pode ser um bom negócio para a segurança interna e para os interesses geoestratégicos dos EUA. Mais barato, certamente, do que poupar supostamente agora e pagar, num futuro próximo, as consequências de um Putin imperialista Europa dentro.

O Presidente Putin recebeu há dias, em Moscovo, a ministra norte-coreana dos Negócios Estrangeiros. No Kremlin, a senhora Choe Son-hui discutiu com o líder russo, depois de um primeiro encontro com o homólogo Lavrov, o aprofundamento da cooperação militar russo-norte-coreana. Em breve, Putin deverá retribuir com uma visita a Pyongyang.

Washington acusou a Rússia de ter disparado mísseis balísticos norte-coreanos contra a Ucrânia recentemente, somando-se aos já utilizados nos ataques de 30 de dezembro e 2 de janeiro. Pyongyang e Moscovo negam, para já, a transferência de armamento. É, no entanto, muito provável que o regime norte-coreano recebeu assistência técnica da Rússia no lançamento do primeiro satélite de reconhecimento militar em novembro de 2023. A Coreia do Sul estima que o número de contentores com mísseis balísticos, lançadores e centenas de milhares de munições de artilharia transferidos desde o verão pela Coreia do Norte para a Rússia já ultrapasse os cinco mil.

À Rússia de Putin interessa que a guerra no Médio Oriente se prolongue, para que o foco da atenção mediática e dos sentimentos dos eleitores do Ocidente alargado se desvie dos crimes que os russos continuam a cometer na Ucrânia. E também para que as capitais ocidentais vivam no dilema de deslocar meios militares e financeiros de Kiev para a questão Israel/Hamas.

Já o Irão, fornecedor de drones shahed com que os russos flagelam as cidades ucranianas, prepara-se para fornecer também mísseis balísticos a Moscovo. Está a ser negociado um acordo de segurança entre Moscovo e Teerão, em que se fala de integridade territorial, soberania e de entendimentos comuns entre Rússia e Irão sobre esses conceitos.

Criado há 13 anos por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, o BRICS acaba de ser alargado a outros cinco países: Arábia Saudita, Irão, Egito, Etiópia e Emiratos Árabes Unidos. A Argentina teria também entrado, mas o novo presidente Milei (ultraliberal, anti Rússia e anti China) para já excluiu essa entrada. Com este alargamento, os BRICS consolidam o seu papel de voz do Sul global e reforçam o seu peso na política internacional. O alargamento terá lugar sob a presidência da Rússia e será devidamente assinalado na cimeira de Kazan, em outubro.

O crescimento dos BRICS deve ser tido em conta. Mas também tem que ser posto em contexto. Há um potencial interno de conflito muito considerável: o Egipto e a Etiópia lutam pelas águas do Nilo; a Arábia Saudita e o Irão lutam, por vezes duramente, há décadas pela supremacia no Golfo Pérsico. Mesmo com o acordo Teerão/Riade, realizado em março de 2023 sob os auspícios da China, os recentes acontecimentos no Mar Vermelho, no Iraque e na Síria lembram-nos que Irão e Arábia Saudita estão longe de se tornarem amigos.

Mesmo assim, haverá um consenso mínimo que não deixa de preocupar. É que todos eles, mesmo diferentes e por vezes conflituantes, gostariam de ver uma ordem mundial internacional menos dominada pelo Ocidente, menos dominada pelos EUA, menos focada no liberalismo, mais propensa à multipolaridade.

Quer isto dizer que os BRICS+ preparam uma guerra global ao Ocidente? Calma. Claro que não.

Os BRICS só podem tomar decisões por unanimidade. É por isso que nem a China, nem a Rússia, nem o Irão, no futuro, podem impor facilmente as suas posições. E a distinção que o ministro dos Negócios Estrangeiros da Índia, Subrahmanyam Jaishankar, fez em relação ao seu país, em setembro, é suscetível de se aplicar à maioria dos Estados dos BRICS: “A Índia não é ocidental, mas não é antiocidental”.

As transições de poder costumam ser lentas. Os acontecimentos disruptivos dos últimos dois anos e meio – saída americana do Afeganistão, invasão russa da Ucrânia, guerra Israel/Hamas, instabilidade no Mar Vermelho – foram aceleradores, que, em vez de clarificar, desordenaram.
Voltaire lembrava-nos: “Deus é contra a guerra, mas fica do lado de quem atira melhor.”


Especialista em Política Internacional

QOSHE - A era da desagregação - Germano Almeida
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A era da desagregação

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23.01.2024

Estamos já a viver uma nova ordem internacional? Possivelmente não. Ainda não. Onde estamos então? Viveremos uma fase final da ordem unipolar americana? Ou já se apronta uma nova ordem multipolar, com protagonistas autocráticos como a China, a Rússia ou o Irão a aproveitarem-se do suposto declínio americano e da contínua irrelevância europeia?

Fomo-nos habituando a ouvir que a mudança é o traço comum da sociedade contemporânea. E que essa mudança é cada vez mais rápida e acelerada. O que não estaríamos, certamente, a contar era que, em menos de dois anos, essa mudança nos mostrasse a primeira invasão de território de um país sobre outro em espaço europeu desde a II Guerra Mundial; a maior guerra na história de Israel, país marcado por várias guerras existenciais com os seus vizinhos ameaçadores; que os norte-americanos viessem a colocar como possível futuro presidente um ex-presidente instável, incoerente e que faz da mentira o seu principal argumento político.

Uma análise fria dos principais fatores que dominam o tabuleiro mundial apontam-nos para que a estabilidade está a perder para o caos. A Liberdade está a perder para o Autoritarismo. O ‘eu’ e o ‘nós’ estão a prevalecer perante o receio do ‘outro’ e ‘eles’. A Esperança está a perder para o Medo.

Estamos a caminhar para uma era de desagregação, num ambiente de crescente conflito entre as potências. E nesse ambiente as regras de boa convivência ficam em perigo e sobrevem a necessidade da força.

A invasão russa da Ucrânia e o ressurgir explosivo da Guerra Israel/Hamas, na versão mais grave, perigosa e mortífera de um conflito na região pelo menos desde 1973, deram à Presidência Biden duas inesperadas oportunidades, com muitos riscos inerentes é claro, para uma espécie de regresso à liderança em dois palcos onde os EUA assumiram lideranças decisivas, mas de onde, nos........

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