Que Donald Trump não acredita na NATO, já tínhamos percebido desde o verão de 2016, quando - já nomeado presidencial republicano - desatou a atirar contra o artigo 5.º do Tratado de Washington.

Quatro meses depois, o mesmo candidato desbragado antimultilateralismo ganhava as eleições presidenciais e começava um mandato de America First que pôs em causa as sete décadas anteriores de liderança norte-americana da Ordem Internacional Liberal saída das ruínas da II Grande Guerra Mundial.

O triunfo de Joe Biden sobre Donald Trump na eleição de novembro de 2020 (mais claro do que muitos consideram numa leitura apressada) parecia ter redirecionado a grande potência americana no caminho correto.

Só que não: Trump, nesta terceira campanha presidencial seguida (ganhou a primeira, perdeu a segunda, veremos como será a terceira), ressurge forte nas perspetivas de vitória na eleição geral - a nove meses do duelo de 2020 estava 5,5% atrás de Biden, a nove meses do duelo de 2024 está 1,7% à frente do mesmo Biden - e é mesmo possível que o pior volte a acontecer.

Um possível vencedor Trump tem, obviamente, um risco muito maior nas declarações que profere. E o que Donald disse há dias, num comício na Carolina do Sul, ao incitar a Rússia a invadir os países da NATO que não cumpram as suas obrigações de financiamento, só pode ser interpretado de duas formas: como uma brincadeira de mau gosto, ou como um caso aberrante de traição.

Nenhuma das hipóteses é boa ou, sequer, digna: de um Presidente dos EUA não se espera que esteja, propriamente, “a brincar” quando fala de um cenário de tal gravidade; quanto à hipótese de traição (incitar uma potência agressora a invadir um país nosso aliado), no caso de Trump já não seria a primeira vez. Não foi só o claríssimo incitamento à insurreição a 6 de janeiro de 2021, que redundou na invasão ao Capitólio: foi também o que aconteceu na Cimeira de Helsínquia, no verão de 2018.

Para os que já se esqueceram do que aconteceu na capital finlandesa, no verão de 2018, aqui fica a recordação: corria o dia 16 de julho desse ano e o então presidente dos EUA, Donald Trump, a meio de mandato e numa fase em que o Relatório Mueller (sobre a interferência russa nas eleições 2016, que estava a ser produzido), concedia ao seu homólogo russo uma complacência comprometedora, dando razão a Putin e deslegitimando a posição da sua própria Administração e das agências de inteligência e informação, que tinham nessa altura já como certo que a Rússia tinha interferido na eleição presidencial de 2016.

Foi um episódio quase bizarro, em que o então presidente dos EUA se aliou ao homólogo de potência rival e se colocou contra a posição oficial da sua própria administração (“I don’t see any reason why it would be Russia”, “não vejo qualquer razão pela qual possa ter sido a Rússia”, disse Trump ao lado de um Putin, enquanto o líder russo exibia a sua melhor poker face). Mais: Trump, nessa cimeira, reuniu-se a sós com Putin e um tradutor, não existindo quaisquer outros testemunhos por parte de assessores ou conselheiros do então presidente dos EUA, que tentaram evitar que isso acontecesse. O que se passou foi inédito e contraria todos os princípios da diplomacia internacional. No final, Donald Trump confiscou as notas do tradutor e durante a conferência de imprensa conjunta parecia visivelmente embaraçado. “O comportamento de Trump ao lado de Putin foi nada menos do que traição”, sentenciou, na altura, John Brennan, ex-diretor da CIA.

As reações europeias às palavras de Trump na Carolina do Sul não se fizeram esperar. E foram fortes, claras e eloquentes. Vieram de quase todo o lado: Borrell, Metsola, Scholz, Breton, Tusk… A grande questão é se terão consequências práticas, ou morrerão, uma vez mais, na emoção do momento.

Os chefes da diplomacia do Triângulo de Weimar (França, Alemanha, Polónia), reunidos em Paris, concordaram na necessidade de a Europa construir “um segundo seguro de vida além da NATO” (a expressão é do ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Stéphane Séjourné). Não como um substituto da NATO, mas como um complemento à NATO.

Resta saber como poderá consumar-se essa ideia correta, mas arrojada. No pós-invasão russa da Ucrânia, foi também de Paris que nasceu a ideia (entretanto já concretizada) da Comunidade Política Europeia, lançada pelo presidente Macron - reunir os 27 da UE com o Reino Unido, a Ucrânia e os países da parceria oriental que ainda não conseguiram entrar na UE. Dois anos depois, é discutível que esse novo corpo tenha oferecido resultados práticos.

No caso da Defesa, a questão é muito concreta: vai a Europa ser capaz de recuperar os muitos anos de atraso na capacidade de produção de armamento? Séjourné é claro: a Europa “precisa de construir uma indústria de Defesa. Para comprarmos europeu no âmbito das nossas indústrias da Defesa e para nos prepararmos em caso de conflito. “É o sentido da História.”

Os desmandos de Trump fizeram os líderes europeus abrir os olhos de vez para o seu orçamento para a Defesa. Radoslaw Sikorski, de regresso à chefia da diplomacia de Varsóvia (e com o crédito de a Polónia ser o país da NATO que maior percentagem do seu PIB oferece à Defesa: 3,9%), alertou: “A Aliança Atlântica não é um contrato com uma empresa de segurança.”

O chanceler alemão defende produção em “grande escala” de armamento na Europa.

Scholz instou os europeus a voltarem-se para a produção em massa de equipamento militar, favorecendo encomendas agrupadas e de longo prazo, e alertou para a ameaça duradoura representada pela Rússia. “Devemos (...) voltar-nos para a produção de armas em grande escala”, insistiu Olaf Scholz, lembrando que esta é uma “necessidade urgente”.

“Por mais dura que seja esta realidade, não vivemos tempos de paz”, sublinhou o chanceler alemão. A guerra da Rússia na Ucrânia e as “ambições imperiais” de Putin representam “uma grande ameaça”. “Quem quer a paz deve conseguir dissuadir possíveis agressores”, defendeu Scholz. “Uma defesa forte exige uma base industrial sólida. Isto acontecerá se nós, europeus, agruparmos as nossas encomendas, se unirmos os nossos recursos e assim dermos à indústria perspetivas para os próximos 10, 20 ou 30 anos”.

Todo este lamentável disparate Trump (mais um, mas não apenas mais um) terá, pelo menos, a virtude de nos fazer ver, europeus, que acabou o tempo das falsas ilusões de prosperidade e segurança, garantidos por décadas pela Pax Americana.
Temos de acordar.

Não, não é um mero desabafo de um humilde cronista que tanto tem insistido nesta tecla. Foi, por exemplo, a terminologia utilizada pelos responsáveis das comissões de negócios estrangeiros e política externa dos países bálticos e nórdicos (Letónia, Lituânia, Estónia, Suécia, Islândia, Dinamarca e Noruega).

Como bem concluiu Olena Zelenska, primeira-dama ucraniana, na manhã de 29 de dezembro de 2023 (dia do maior ataque russo sobre cidades ucranianas até à data), “a democracia defende-se com armas”.

É isto. Para quem, como nós, achou que em nosso tempo de vida não correria o perigo de viver diretamente uma guerra, já é imenso.
E é tremendo.


Especialista em Política Internacional

QOSHE - A democracia defende-se com armas - Germano Almeida
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A democracia defende-se com armas

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15.02.2024

Que Donald Trump não acredita na NATO, já tínhamos percebido desde o verão de 2016, quando - já nomeado presidencial republicano - desatou a atirar contra o artigo 5.º do Tratado de Washington.

Quatro meses depois, o mesmo candidato desbragado antimultilateralismo ganhava as eleições presidenciais e começava um mandato de America First que pôs em causa as sete décadas anteriores de liderança norte-americana da Ordem Internacional Liberal saída das ruínas da II Grande Guerra Mundial.

O triunfo de Joe Biden sobre Donald Trump na eleição de novembro de 2020 (mais claro do que muitos consideram numa leitura apressada) parecia ter redirecionado a grande potência americana no caminho correto.

Só que não: Trump, nesta terceira campanha presidencial seguida (ganhou a primeira, perdeu a segunda, veremos como será a terceira), ressurge forte nas perspetivas de vitória na eleição geral - a nove meses do duelo de 2020 estava 5,5% atrás de Biden, a nove meses do duelo de 2024 está 1,7% à frente do mesmo Biden - e é mesmo possível que o pior volte a acontecer.

Um possível vencedor Trump tem, obviamente, um risco muito maior nas declarações que profere. E o que Donald disse há dias, num comício na Carolina do Sul, ao incitar a Rússia a invadir os países da NATO que não cumpram as suas obrigações de financiamento, só pode ser interpretado de duas formas: como uma brincadeira de mau gosto, ou como um caso aberrante de traição.

Nenhuma das hipóteses é boa ou, sequer, digna: de um Presidente dos EUA não se espera que esteja, propriamente, “a brincar” quando fala de um cenário de tal gravidade; quanto à hipótese de traição (incitar uma potência agressora a invadir um país nosso aliado), no caso de Trump já não seria a primeira vez. Não foi só o claríssimo incitamento à insurreição a 6........

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