Lembro-me da romaria familiar. Depois do jantar, pela mão dos meus pais e na companhia da minha irmã mais nova, o passeio noturno fazia-se pela Almirante Reis, entre os Anjos, onde morávamos, e o Martim Moniz, onde dávamos meia-volta para regressar a casa. Primeiro uma passagem em frente à Sopa dos Pobres, do lado oposto à Igreja da Nossa Senhora dos Anjos, depois a chegada ao Intendente, nos Anos 90, um enclave de toxicodependentes, com direito a blocos de betão para impedir a entrada ao trânsito pela Rua dos Anjos, a que dá acesso ao largo onde hoje sobram hotéis e casas de chá. Depois, chegavam as montras, de lojas de roupa de gosto duvidoso, novas e em segunda mão, de roupa interior feminina, de tecidos a retalho e até um enorme armazém onde a cidade acorria para comprar máscaras para desfiles de Carnaval. Pela Almirante Reis, também por lá já estavam as primeiras grandes lojas de chineses, uma novidade.

Lisboa não estava na moda, por cá viviam lisboetas, os bons e os maus, os poucos ricos e os muitos pobres. Vivíamos na feliz ignorância de não imaginar que um dia alguém haveria de juntar queijo aos pastéis de bacalhau, que deixaríamos de poder parar em Belém para um pastel de nata sem sermos sujeitos a intermináveis filas ou que jantar fora se tornaria numa experiência com preços ao nível das capitais europeias mais endinheiradas. Hoje, a afirmação pode até soar a fake news, mas deixo uma garantia: tempos houve em que o elétrico 28 mais não era que um transporte público onde, para irritação dos picas e mesmo que no interior sobrassem cadeiras vazias, até dava para andar pendurado à boleia.

Benfica era longe, a Praça de Londres marcava a entrada na zona mais asseada da cidade, no Campo Grande alugavam-se bicicletas e triciclos e à beira-rio nada se passava. Também não me lembro de ouvir queixas quanto ao preço da habitação, nem na Preparatória, ali a meio da Avenida General Roçadas, nem no Liceu, na Praça José Fontana, bem perto do Saldanha, por onde vivia a esmagadora maioria dos colegas de turma. Poucos em casas novas, muitos em casas de família, nos bairros onde pais e avós já tinham crescido.

A cidade era outra, a cidade era a das tascas dos copos de três, e os lamentos sobretudo à volta da falta de emprego, de escudos na conta, de oportunidades. A cidade era a dos empregos de verão, com que pagava a boa vida nas férias, mas também a dos part-time com que muitos colegas financiavam o dia a dia ou ajudavam a família. A cidade era dura e nada trendy. Genuína, dirão os saudosistas, bem mais triste, digo eu.

É verdade que hoje são poucos os que podem usufruir de tudo o que a nova Lisboa tem para oferecer. É verdade que os ordenados terceiro-mundistas limitam quem por cá ainda foi ficando e que a chegada de hordas de estrangeiros nos deixou em terreno mais inclinado que as famosas colinas. Mas também não deixa de ser verdade que hoje, como nunca, temos o Mundo ao fundo da rua. Seja no nepalês que abriu, na associação cultural que se sustenta com a receita do bar, nos festivais das artes mais variadas em que os bilhetes são vendidos a turistas, ou mesmo nas escolas onde as nacionalidades de alunos se multiplicaram. Lisboa caminha para uma miscelânea cultural que, a mim, me deixa sobretudo invejoso.

Sou dos que acredita que a mistura cultural nos fará querer mais, evoluir e encurtar a diferença para os que nos visitam vindos de países mais ricos, social, cultural e financeiramente. Sou dos que acha que o maior problema está na distribuição da riqueza que por cá passa e na falta de ideias para combate ao fosso que nos separa do verdadeiro primeiro-mundo. Estou entre os que preferem discutir como podemos assegurar que os lisboetas têm condições para ficar na sua cidade, antes de procurar formas de limitar o número de estrangeiros que nos escolheu como vizinhos.

Saudades da velha Lisboa? Nem por isso. De poder andar à pendura no 28? Algumas. Pastéis de bacalhau com queijo? Duvido que alguma vez os prove.

Subdiretor do Diário de Notícias

QOSHE - Saudades de Lisboa? - Filipe Garcia
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Saudades de Lisboa?

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30.01.2024

Lembro-me da romaria familiar. Depois do jantar, pela mão dos meus pais e na companhia da minha irmã mais nova, o passeio noturno fazia-se pela Almirante Reis, entre os Anjos, onde morávamos, e o Martim Moniz, onde dávamos meia-volta para regressar a casa. Primeiro uma passagem em frente à Sopa dos Pobres, do lado oposto à Igreja da Nossa Senhora dos Anjos, depois a chegada ao Intendente, nos Anos 90, um enclave de toxicodependentes, com direito a blocos de betão para impedir a entrada ao trânsito pela Rua dos Anjos, a que dá acesso ao largo onde hoje sobram hotéis e casas de chá. Depois, chegavam as montras, de lojas de roupa de gosto duvidoso, novas e em segunda mão, de roupa interior feminina, de tecidos a retalho e até um enorme armazém onde a cidade acorria para comprar máscaras para desfiles de Carnaval. Pela Almirante Reis, também por lá já estavam as primeiras grandes lojas de chineses, uma novidade.

Lisboa não estava na moda, por cá viviam lisboetas, os bons e os maus, os poucos ricos e os........

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