Foi em março que, de uma conferência sobre a segurança da água, saiu o aviso das Nações Unidas. O consumo excessivo - "vampírico" foi o termo usado para ilustrar a gravidade do cenário - está a ameaçar a nossa sobrevivência, "estamos a drenar o sangue da Humanidade", disseram os especialistas que então lembravam números aterradores: um quarto da população mundial depende de água de qualidade duvidosa para sobreviver, metade ainda luta pelas condições sanitárias mais básicas. Um cenário distante, para quem vive num país ocidental, mais ou menos funcional, mas com o luxo de ter as estruturas mais básicas asseguradas. Sim, o termo é, cada vez mais, luxo.

Este fim de semana, novos alertas. De Roma, mais precisamente do Vaticano, a frase que ecoou foi do Papa Francisco, à margem do tradicional concerto da época. "Sabemos, infelizmente, que o Natal também é vítima deste modelo comercial e consumista", disse. Ao longe, não é possível aferir o alcance da frase da maior figura da Igreja Católica. Falava do espírito original do Natal, ou do exagero de consumo que a época motiva? Ainda assim, sabemos que não tem poupado palavras em defesa do clima. Foi em outubro passado que publicou Laudate Deum, uma exortação apostólica, onde voltava a lembrar como o nosso mundo se aproxima do "ponto de rutura", como as alterações climáticas são "um problema social e global, intimamente ligado à dignidade da vida humana", e como os seus efeitos se abatem, sobretudo, nas "pessoas mais vulneráveis". Mas voltemos aos avisos mais recentes.

Enquanto em Roma Francisco discursava, os aeroportos de Liége e Antuérpia, dedicados sobretudo a jatos privados e a receber as encomendas das grandes plataformas online de comércio chinesas, eram bloqueados por ativistas do Alerta Vermelho, uma versão aditivada do nacional Climáximo, movimento capaz de juntar mais de 1000 ativistas em ações concertadas. No final, foram centenas de ativistas detidos, mas o alerta voltou a ser dado. E mesmo que não o tenham no topo das suas preocupações, também eles ali lutavam pelo Natal. Não o deste ano, mas os próximos que, com sorte, chegarão.

Segundo o Global Footprint Network, um think tank internacional dedicado ao estudo da gestão de recursos naturais do planeta, foi em agosto que ultrapassámos a linha vermelha: de lá para cá, tudo o que consumimos, a Terra não conseguirá regenerar. Nessa altura, divulgaram outro número que impõe respeito: para manter o atual ritmo de consumo da Humanidade, a Terra não é suficiente, e para saciar todas as nossas compras seria necessário outro planeta quase do mesmo tamanho (1,7).

E agora chega o Natal.

Gosto de oferecer presentes, de proporcionar uma boa surpresa, de ver a cara de quem os recebe. Naturalmente, também gosto de os receber, mas dou por mim, cada vez mais, incomodado com os embrulhos, e com o desperdício que a eles vem associado. Dou por mim, a pensar que a capacidade de foco do meu sobrinho, que aos 6 anos ainda não sabe como faz parte dos sortudos, se esgota ao segundo brinquedo e que o terceiro, e o quarto, serão cruelmente esquecidos e arrumados a um canto. Dou por mim a pensar que mais vale um presente bem escolhida, que em família pode bastar um abraço e um beijo, uma posta de bacalhau com grão e couve, acompanhada por uma garrafa de tinto, para fazer um Natal memorável. Seja a festa mais, menos, ou nada religiosa, não são os embrulhos que fazem o Natal. O Papa sabe-o, os ambientalistas radicais também e o Xerife, assim o chamo, terá de o aprender.

Subdiretor do Diário de Notícias

QOSHE - O Papa, os ambientalistas radicais e os Natais do Xerife - Filipe Garcia
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O Papa, os ambientalistas radicais e os Natais do Xerife

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19.12.2023

Foi em março que, de uma conferência sobre a segurança da água, saiu o aviso das Nações Unidas. O consumo excessivo - "vampírico" foi o termo usado para ilustrar a gravidade do cenário - está a ameaçar a nossa sobrevivência, "estamos a drenar o sangue da Humanidade", disseram os especialistas que então lembravam números aterradores: um quarto da população mundial depende de água de qualidade duvidosa para sobreviver, metade ainda luta pelas condições sanitárias mais básicas. Um cenário distante, para quem vive num país ocidental, mais ou menos funcional, mas com o luxo de ter as estruturas mais básicas asseguradas. Sim, o termo é, cada vez mais, luxo.

Este fim de semana, novos alertas. De Roma, mais precisamente do Vaticano, a frase que ecoou foi do Papa Francisco, à margem do tradicional concerto da época. "Sabemos, infelizmente, que o Natal também é vítima deste modelo........

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