Àporta da ginjinha, no Barreiro, por onde passa em todas as vésperas de Natal, Marcelo Rebelo de Sousa confessou-se. O Presidente vive uma "situação pessoal muito desagradável", ainda para mais "na pior altura do ano para ter situações pessoais desagradáveis". Falava do Natal, naturalmente.

São dias que se passam em família, entre comes e bebes, à mesa e de volta de tradições, mais ou menos religiosas. São dias que se querem de festa, de partilha, de afetos e de um ou outro presente. Dias que se esperam felizes, junto dos que nos são mais queridos. Sem informação privilegiada, suspeito que Marcelo não teve o melhor dos Natais. Solitário terá sido, ou não tivesse lembrado que, desde que assumiu a Presidência, tornou "muito claro que não havia primeira-dama, nem pai, nem irmão, nem filho, nem neto de Presidente". Uma declaração parecida com a que ouvimos a António Costa, no discurso da demissão, quando disse que "um primeiro-ministro não tem amigos". Mas não é a solidão das mais altas figuras do Estado que me traz aqui.

Nos últimos dias, ficámos a saber que Nuno Rebelo de Sousa, filho do Presidente, reuniu-se com António Lacerda Sales, secretário de Estado da Saúde à época do caso das gémeas, que acabariam a ser tratadas à atrofia muscular espinal no Hospital de Santa Maria. Em entrevista ao jornal Expresso, assumiu o então governante socialista que Nuno Rebelo de Sousa lhe pedira para ser recebido e que acabara a apresentar o caso, "com muita generosidade e muito sentido humanista", mas que no final não lhe fez qualquer favor ou marcação de consulta.

Na ginjinha, Marcelo fez a sua leitura. Para o Presidente "ficou claro que quem organizou esse encontro" o fez por não ter conseguido "chegar onde queria por outro caminho, que era a Presidência da República. Não obteve aquilo que queria". "Descobrir agora, o que devia ter sabido há quatro anos, foi uma desilusão", concluiu.

Dei por mim a pensar que não conheço quem tenha acesso a gabinetes de secretários de Estado, quem tenha o poder para agendar reuniões a fim de expor casos de pacientes estrangeiros a precisar de cuidados médicos no SNS. Também dei por mim a pensar que isso diz mais sobre o polémico caso do que sobre a fraca influência dos meus amigos e conhecidos. Fosse outro o nome de família e teria Nuno Rebelo de Sousa conseguido a reunião com o secretário de Estado da Saúde? Podendo eu estar enviesado pelo fraco peso dos meus amigos, deixo a pergunta por responder.

Não sabemos quem marcou a consulta, quem validou a ministração do medicamento de quatro milhões de euros, ou quem tratou do processo de nacionalidade, decisivo para que o restante processo pudesse decorrer com uma brevidade, suspeito, impossível na maioria dos casos. Também não sabemos que responsabilidade teve Marcelo, mas não é sobre ele que recaem as maiores suspeitas.

Numa recente sondagem, a Presidência da República merecia a confiança de 65% dos portugueses - uma queda de 4%, mas ainda assim bem acima dos 28% que confiam no Governo, esse com uma queda de 6%. "Uma consolação", reconheceu Marcelo, satisfeito com o facto de a polémica, "com muitas notícias contrárias ao Presidente", não ter infligido danos irreparáveis à sua imagem pública.

E sobre as notícias mais recentes, as que dão nota de que Nuno Rebelo de Sousa reuniu com Ana Mendes Godinho, enquanto ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, para tratar da internacionalização dos jogos da Santa Casa para o Brasil, o Presidente deixou a citação para memória futura: "Não tenho a mínima ideia." Jogada ajuizada, mas que a mim não serve de grande conforto. A mim, a dúvida que mais me assola é quanto vale um bom apelido na sociedade portuguesa e o que isso diz de nós enquanto democracia que se deseja evoluída. Quanto a Marcelo, que não se preocupe. O ditado que tradicionalmente aplicamos ao pagão Carnaval, também é válido para o Natal: ninguém lhe levou a mal.

Subdiretor do Diário de Notícias

QOSHE - Marcelo que descanse. É Natal e ninguém leva a mal - Filipe Garcia
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Marcelo que descanse. É Natal e ninguém leva a mal

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26.12.2023

Àporta da ginjinha, no Barreiro, por onde passa em todas as vésperas de Natal, Marcelo Rebelo de Sousa confessou-se. O Presidente vive uma "situação pessoal muito desagradável", ainda para mais "na pior altura do ano para ter situações pessoais desagradáveis". Falava do Natal, naturalmente.

São dias que se passam em família, entre comes e bebes, à mesa e de volta de tradições, mais ou menos religiosas. São dias que se querem de festa, de partilha, de afetos e de um ou outro presente. Dias que se esperam felizes, junto dos que nos são mais queridos. Sem informação privilegiada, suspeito que Marcelo não teve o melhor dos Natais. Solitário terá sido, ou não tivesse lembrado que, desde que assumiu a Presidência, tornou "muito claro que não havia primeira-dama, nem pai, nem irmão, nem filho, nem neto de Presidente". Uma declaração parecida com a que ouvimos a António Costa, no discurso da demissão, quando disse que "um primeiro-ministro não tem amigos". Mas não é a solidão das........

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