Quem por lá passou, dificilmente esquece a sensação de remar e não sair do mesmo local. Podemos dar aos braços, às pernas, mergulhar com afinco por baixo das ondas que chegam e, do outro lado, ultrapassada a espuma, é mais do mesmo que nos espera. Remar e pedalar, e esbracejar, sempre sem sair do mesmo sítio e sempre a sentir que a capacidade de encher o pulmão se reduz a cada golfada de ar. Nos agueiros, como na imprensa, a saída não está em frente e recuar também não é opção.

A depauperada situação em que caiu a Global Media fez-se notícia. Não é a primeira vez que a falta de condições nos media nacionais chegam a manchete, tragicamente também não é a primeira vez que falham ordenados ou que, no horizonte, se vislumbram despedimentos, raramente amigáveis. A história tem-se repetido nos últimos anos, sempre na mesma cadência. Primeiro os sinais de alerta, depois os gritos por ajuda, seguem-se as promessas de apoio, um ou outro abaixo-assinado, manifestações de solidariedade variadas e, no final, é o mesmo caminho que se segue, com menos meios, menos capacidade de respirar, menos força para enfrentar a ondulação cada vez mais forte. Pelo peso histórico dos títulos, pelo número de trabalhadores envolvidos, desta vez, o clamor está audível como nunca. Ainda bem, mas nem a luta é nova nem a falta de caminho uma novidade. Cada vez mais, o estranho é ainda haver tanta gente com força para continuar a remar. Mas para onde?

Discutem-se apoios estatais, discutem-se regras para que se conheçam identidades de acionistas, discutem-se os pecados e os erros que nós, jornalistas, temos feitos ao longo dos anos. Estou entre os que não olha para o Estado como bote salva-vidas, também não acredito ser possível identificar quem investe, direta ou indiretamente, nos media. Para a saída do agueiro pouco mais tenho que sugestões.

A autoridade é apenas a de quem rema há pouco mais de vinte anos, precisamente o período em que a força da corrente disparou e em que os braços começaram a desaparecer. E porquê? A crueza da realidade é facilmente transposta em números: aos media nacionais, em 2008 chegaram 200 milhões de euros em publicidade, em 2021 apenas 14. Paralelamente, nas bancas, o fenómeno é transposto pela Pordata: em 2008 eram vendidos quase 374 mil exemplares de publicações periódicas, em 2021 já o número ficava abaixo dos 109 mil. Reflexo da mudança da sociedade e dos seus hábitos de consumo de informação, seguramente. Muita culpa nossa, jornalistas, também.

Primeiro achámos que devíamos oferecer o nosso trabalho de borla, depois que o sucesso seria medido em pageviews (foi a moda das galerias), ainda chegou o tempo em que seriam as redes sociais a salvar os jornais, uma espécie de síndrome de Estocolmo, justificado pela crença então inabalável de que os leitores de lá não saíriam. Sim, de repente, fomos nós, que passámos a achar que o nosso trabalho não valia o que se pagava pelas edições em papel, que nos deixámos convencer que precisávamos de volumes mastodônticos de tráfego online mesmo que esse pouca ou nenhuma receita gerasse (ainda se lembra de quando os jornais não tinham artigos fechados?) e deixámos de acreditar que os leitores fossem capazes de nos procurar. Logo agora quando já nem é preciso ir à bancas e que basta, ao computador ou no telemóvel, escrever www.dn.pt. Desvalorizámos o nosso trabalho e o nosso trabalho desvalorizou. Aqui, fica o Mea culpa.

E chegados aqui, mergulhados num agueiro de proporções bíblicas, que ameaça afogar uma classe e arrastar um serviço essencial à democracia para parte incerta? Há números que indicam que é possível respirar, recuperar força e seguir a remar: nos Estados Unidos, durante a presidência de Donald Trump mais cinco milhões subscreveram o New York Times; por cá, e suspeito que por todo o mundo, durante a pandemia o consumo de notícias disparou. Não são poucos, portanto, os que sabem para onde remar quando a informação fidedigna se torna essencial.

Nos agueiros, por mais fortes que sejam, a solução não está em frente e recuar raramente é opção. É preciso respirar, sair por um dos lados e mudar a rota para que se chegue ao destino pretendido. E nós, jornalistas, para onde vamos remar?
Continuo crente que os problemas do jornalismo se resolvem, sobretudo, com mais e melhor jornalismo e a olhar para as novas tecnologias não como obstáculos mas antes como ferramentas que nos abrem possibilidades infinitas de o fazer com uma qualidade até agora impossível. Tragicamente, por estes dias, não é nisso que se pensa. Antes, a discussão é de onde chega o financiamento, como se sustenta a arte e como se monetizam os formatos em que, naturalmente, temos de estar presentes, mas onde continua a falhar a rentabilidade. Deixo a pergunta: paga por algum podcast?

Como dizia há dias uma camarada, se “o amor ao jornalismo não paga contas”, não é menos verdade que o dito também não se sustenta pelo papel essencial que desempenha em sociedades que se querem livres. Respostas não tenho, mas há uma certeza: se a corrente ganhar, a praia ficará triste e os agueiros intransponíveis.

QOSHE - A imprensa no agueiro - Filipe Garcia
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

A imprensa no agueiro

11 1
23.01.2024

Quem por lá passou, dificilmente esquece a sensação de remar e não sair do mesmo local. Podemos dar aos braços, às pernas, mergulhar com afinco por baixo das ondas que chegam e, do outro lado, ultrapassada a espuma, é mais do mesmo que nos espera. Remar e pedalar, e esbracejar, sempre sem sair do mesmo sítio e sempre a sentir que a capacidade de encher o pulmão se reduz a cada golfada de ar. Nos agueiros, como na imprensa, a saída não está em frente e recuar também não é opção.

A depauperada situação em que caiu a Global Media fez-se notícia. Não é a primeira vez que a falta de condições nos media nacionais chegam a manchete, tragicamente também não é a primeira vez que falham ordenados ou que, no horizonte, se vislumbram despedimentos, raramente amigáveis. A história tem-se repetido nos últimos anos, sempre na mesma cadência. Primeiro os sinais de alerta, depois os gritos por ajuda, seguem-se as promessas de apoio, um ou outro abaixo-assinado, manifestações de solidariedade variadas e, no final, é o mesmo caminho que se segue, com menos meios, menos capacidade de respirar, menos força para enfrentar a ondulação cada vez mais forte. Pelo peso histórico dos títulos, pelo número de trabalhadores envolvidos, desta vez, o clamor está audível como nunca. Ainda........

© Diário de Notícias


Get it on Google Play