Na semana passada uma senhora foi atropelada por um camião na Avenida Fernão Magalhães, nas proximidades da loja do cidadão. Acabou por falecer.
Faz agora um ano que um senhor foi também atropelado por um camião na Avenida Fernão Magalhães, também tendo falecido.
Relativamente ao caso mais recente a Câmara Municipal declarou à imprensa que “não tinha nem teve, ao longo do dia de hoje, conhecimento de qualquer anomalia no funcionamento do referido semáforo” acrescentando “uma equipa municipal deslocou-se ao local e não foi detetada qualquer anomalia”.
Não temos os dados concretos para atribuir as responsabilidades nos casos relatados. Mas se nos ficarmos pela busca e atribuição da culpa nunca resolveremos o problema. Porque os actos, as distracções, as impaciências se repetem e repitirão. E mais senhores e senhoras e crianças e jovens correrão o mesmo risco. Mesmo que tivessem sido as vítimas as causadoras por não respeitarem a sinalização. Até porque a pena de morte nos parecerá desproporcionada a uma infracção ao código da estrada.
Não basta verificar se o semáforo tinha alguma “anomalia”. A semaforização é parte de um paradigma Ele próprio anómalo. Um paradigma de mobilidade que, mesmo no centro urbano, dá total primazia ao tráfego rodoviário relegando o impertinente peão para as sobras do espaço público. Porque estão os semáforos vermelhos para os peões durante largos minutos e quando enfim lhes permitem a passagem é para se despacharem em 15 BRAVOS SEGUNDOS 15? E isto numa das zonas mais demandadas pelos cidadãos atendendo aos serviços públicos existentes. E isto repete-se por toda a urbe.
Porquê? Qual a razão deste paradigma? Porque se mantém a mobilidade urbana escrava do tráfego automóvel? Será que quem a planeia é engenheiro de tráfego? Quando temos um martelo todos os problemas são pregos.
Por isso os peões, assim como as árvores, são empecilhos ao trânsito fluído…
E nós somos levados a considerar esse favorecimento, esse paradigma, como normal. No caso do atropelamento do ano passado perguntava um comentador o que estava a fazer um senhor de 84 anos sozinho na rua… Ou seja, em vez de nos perguntarmos o que anda um camião a fazer pelo centro da cidade perguntamo-nos o que anda um cidadão a fazer?! Atrevendo-se a ser peão?!…
Não, não é normal que andem camiões no centro da cidade. Não, não é normal fazer os peões atravessar avenidas em 15 segundos. Não, não é normal fazer os peões esperarem minutos para poderem atravessar a avenida. Não, não é normal abater árvores para dar espaço ao trânsito automóvel subtraindo espaço e sombra aos peões.
Não, não é normal.
O que fazer?
Há um programa da Organização Mundial da Saúde que se chama “Cidades Amigas das Pessoas Idosas”. Esse programa inclui um guia com os pontos essenciais e testemunhos. Vários pontos coincidem, nada surpreendente, com questões ambientais.
Em matéria de espaço público, o melhoramento, alargamento, dos espaços pedonais e diminuição e acalmia do tráfego rodoviário. Um dos pontos são precisamente os semáforos para peões, com um tempo de verde para estes extremamente curto. Porque sempre favorecer o tráfego automóvel em detrimento da mobilidade pedonal?
E porque existe tanto trânsito de passagem? Porque não fomentar a utilização das circulares para esse tráfego? Reservando o miolo da cidade para o trânsito dedicado?
Também os jardins e espaços ajardinados são um dos pontos destacados. Arborização, para melhorar a qualidade da utilização do espaço público, incluindo as ruas.
Transportes públicos, perto, frequentes e eficientes. Este ponto depende muito da diminuição drástica do tráfego automóvel particular de passagem.
São pontos de contacto com exigências ambientais.
Preparar as cidades para os mais velhos, para garantir uma qualidade de vida activa e autónoma, é não só um investimento no nosso futuro individual mas já no nosso presente colectivo.
Não é normal morrer atropelado por um camião no centro da cidade. Que passe a ser inaceitável.

Nota: Pode consultar-se o guia aqui:
https://apps.who.int/iris/handle/10665/43755

QOSHE - As tragédias de um paradigma - Mário Reis
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As tragédias de um paradigma

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21.03.2024

Na semana passada uma senhora foi atropelada por um camião na Avenida Fernão Magalhães, nas proximidades da loja do cidadão. Acabou por falecer.
Faz agora um ano que um senhor foi também atropelado por um camião na Avenida Fernão Magalhães, também tendo falecido.
Relativamente ao caso mais recente a Câmara Municipal declarou à imprensa que “não tinha nem teve, ao longo do dia de hoje, conhecimento de qualquer anomalia no funcionamento do referido semáforo” acrescentando “uma equipa municipal deslocou-se ao local e não foi detetada qualquer anomalia”.
Não temos os dados concretos para atribuir as responsabilidades nos casos relatados. Mas se nos ficarmos pela busca e atribuição da culpa nunca resolveremos o problema. Porque os actos, as distracções, as impaciências se repetem e repitirão. E mais senhores e senhoras e crianças e jovens correrão o mesmo risco. Mesmo que tivessem sido as vítimas as causadoras por não respeitarem a sinalização. Até porque a pena de morte nos parecerá desproporcionada........

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