Por estes dias tive a infância na mão. O cheiro entrou-me pelos olhos. Houve uma névoa que tricotou a cozinha, toda ela pintada por fumo breve. Um silêncio que abraça. As vozes eram família. Esta família não a tive largos anos. Da mãe ao filho um sorriso em cordão, tantas vezes vazio, em tempo que nunca voltarei a tocar. Imperdoável? Sim, não há perdão quando o bem é um caminho quase sempre tranquilo que não pede circo.
Escrevo com as mãos trémulas, tamanha a inocência destes dias. Cheguei tarde. Um chegar tarde, não reclamado muito menos apontado, que sarapantou o dever. A estrada, vezes sem conta serpenteada, foi desta vez quilometrada em ânsia.
Os ossos de assuã – parte do lombo do porco com alguns restos de carne e tutano – são um tesouro na gastronomia portuguesa. Entrar neles é caminhar no Palácio de Versalhes com o manto de Luís XIV. As narinas abrem. Quem observa fica hirto. O céu abranda. As paredes são o que nós quisermos. Há no mastigar uma brandura que amolece os molares. Estica os incisivos na ânsia, quase pueril, de voltar a receber. Há em tudo um despir que só é entendido por quem esgravatou a terra dos anos 80. Há um rilhar bom. Não o que aponta para a porta de saída, mas o que convida a sentarmo-nos à mesa.
Quem andou de camisa aberta, Larouco dentro, sabe o que vale o vento. Um vento que entra pela frincha da porta, muitas vezes sacudido por entre moscas e gatos. Ninguém reclama até porque o fumo que sai do pote preto é uma ode ao olhar. Lá dentro é tudo pecado. Um nevoeiro de sabores com batata kennebec, couve tronchuda salpicada pela geada, chouriço de abóbora, pernil, orelha, cabeça, cenoura, grelos e um molho todo ele biológico, todo ele atraente à gula. Um palato fumado, regado por um Douro excelso. Aqui e ali, vozes com os dentes abertos. Pedem mãos arregaçadas. Comida à mão. Nada de faca e garfo. Aqui a brutalidade é doce, cavada por uma outra lembrança. Algumas doem. Outras são recordações boas.
Nem sempre foi assim. Nem sempre houve este estalar de liberdade. O tempo até era o certo, mas o som lembra a cabra do monte que só está bem a esbarrondar paredes. Pousar era para os que podiam. Aqueles que tinham colhido mando. Os pequenos eram refugo. Nem todos, mas a maioria era. Talvez por isto, e por outro tanto que não vale a pena escrever, sabe tanto o que ainda resta.
Os que vivem nas fraldas da serra descodificam sem dificuldade aqueles que aliviavam o estômago no monte. Juntam-se nas festas, em oração ao santo, ou nos dias de nascimento ou morte do menino. Ao sol ou à chuva, ao calor ou ao frio, há um laço que empurra o tempo para o lugar da puberdade. Tenham o que tiverem, falem ou que falarem, todos desaguam nas conversas do forno do povo, no tocar das vacas ao lameiro, na torna da água, no acomodar do gado, na sementeira, na badola do carro do feno, no cortar do estrume, no aricar da leira, no arranque da batata, no estrumar da corte, no ovo e na sardinha que dava para meia dúzia, na moreia da lenha atrás do escano, nos regos feitos, na sacha do milho, no pipo do vinho, no unto pendurado, no caldo com banha, nas medas das eiras e em tanto que não cabe aqui.
Tudo isto encaixa na comida do pote com lenha de carvalho. Quem comeu sabe do que escrevo. Quem nunca o fez não sabe o que perde. Um calor desigual, um sabor inigualável que cria memória. Há muito tempo que não o fazia desta forma. Com tempo para olhar. Para tocar sem pudor. Houve um quartel que parou.
Parar, nos dias que correm, é como tocar na fé. Ali, naquele espaço, senti o que podia ter sido a mesa da minha infância. Desassombradamente simples. Avassaladoramente una.
Uma ternura que levita e que espanta o que não se quer ouvir e ver. Uma concha aberta que liba o melhor pedaço de fumeiro. Pela parte que me toca, largo tudo pelos ossos de assuã. Imagino, em cada cratera, um por do sol, tamanho o pre- enchimento de alma. As narinas abrem como se avistassem as vestes das algas na maré baixa.
Saí sem fechar a porta. No Barroso ainda há casas assim. Entramos e saímos com porta aberta. Desci as escadas e dei comigo a pensar como é bom ainda viver estes laivos que estão a findar. Felizes os que ainda lhe tocam. O pior é que isto está a acabar a uma velocidade sem travão. É para outra conversa.

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QOSHE - “Pote ” - Ricardo Moura
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“Pote ”

11 0
04.01.2024

Por estes dias tive a infância na mão. O cheiro entrou-me pelos olhos. Houve uma névoa que tricotou a cozinha, toda ela pintada por fumo breve. Um silêncio que abraça. As vozes eram família. Esta família não a tive largos anos. Da mãe ao filho um sorriso em cordão, tantas vezes vazio, em tempo que nunca voltarei a tocar. Imperdoável? Sim, não há perdão quando o bem é um caminho quase sempre tranquilo que não pede circo.
Escrevo com as mãos trémulas, tamanha a inocência destes dias. Cheguei tarde. Um chegar tarde, não reclamado muito menos apontado, que sarapantou o dever. A estrada, vezes sem conta serpenteada, foi desta vez quilometrada em ânsia.
Os ossos de assuã – parte do lombo do porco com alguns restos de carne e tutano – são um tesouro na gastronomia portuguesa. Entrar neles é caminhar no Palácio de Versalhes com o manto de Luís XIV. As narinas abrem. Quem observa fica hirto. O céu abranda. As paredes são o que nós quisermos. Há no mastigar uma brandura que amolece os molares. Estica os incisivos na ânsia, quase pueril, de voltar a receber. Há em tudo um despir que só é entendido por quem........

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