A tarde tinha sido um bafo. Sem vento e com migalhas de pó, largadas pela passada da vezeira. Uma marcha sacudida pelo latir do cão e pelas palavras que saíam da boca do meu tio. O tempo era longo. Estendido por entre giestas, carvalhos, urzes, pinheiros e regatos. Ovelhas atrás e cabras à frente. Aqui e acolá uma parede esbarrondada vá lá saber-se por quem e por que motivo. Em quatro patas, a cabra era a mais acusada. Em duas, talvez o vizinho do lado ou o outro que foi lá meter o nariz depois da sachada que levou. Foi por entre este mastigar de suposições que nos deixamos cair no abraço da capa de burel para “botar a bucha”.
Dias antes, o meu tio tinha escutado no largo do povo que o lobo andava a rondar o gadinho. No romper dos anos 80, não era incomum o pastor trazer do monte uma ovelha mordida ou morta. Precavido, levou consigo preparo, o mesmo é dizer algo que metesse medo a um animal ainda hoje diabolizado.
A navalha estava sempre afiada. Por ela choravam cortes com a palma e o polegar a segurar o pão de centeio. Por cima, caía uma chouriça saída do lareiro em dias onde o borralho vencia o frio. Tudo era bucólico. Sereno. Os corpos, apoiados no cajado, olhavam para a brandura do cair da tarde. Foi por entre esta frugalidade que vi o mais notável animal, no cimo de um monte, em perseguição a uma ovelha. O sobressalto despertou o meu tio que galgou monte acima. Fiquei petrificado com o encalço que culminou num tiro que espantou, em definitivo, qualquer possibilidade de ricochete. O episódio ainda hoje vive em mim. Nunca mais esqueci o fascínio deste canídeo selvagem. Aconteceu há mais de 40 anos.
O lobo ibérico (Canis lupus signatus) em Portugal, subespécie endémica da Península Ibérica, está protegido desde 1988, sendo proibido o abate ou captura e a destruição ou deterioração do seu habitat. Há mais de uma década que o lobo é classificado como “Em Perigo de Extinção” no Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal. A nível europeu é uma espécie prioritária para a conservação segundo a Diretiva Habitats. Em caso de ataques a rebanhos, os donos são compensados monetariamente. O lobo ibérico é ainda abrangido por várias convenções, como são exemplo a de Berna, CITES e convenção sobre a diversidade biológica.
Em proximidade, no Parque Nacional da Peneda-Gerês (PNPG) – composto por 70 mil hectares de património natural, perfumado por uma biodiversidade ímpar – esta espécie faz parte daquela que é a primeira área protegida criada no país, integrada na Rede Nacional de Áreas Protegidas, gerida pelo Instituto da Conservação da Natureza e Florestas (ICNF). É neste ambiente que o lobo ibérico tem a sua população de excelência em Portugal.
Se no início do século XX ocupava praticamente toda a Península Ibérica, atualmente estima-se que existam pouco mais de 2.000, dos quais cerca de 300 no norte de Portugal. Isto significa que ocupa apenas 20% da área de distribuição original, com dois núcleos populacionais separados pelo rio Douro.
É neste contexto de quase extermínio que foi inaugurado o primeiro Centro Interpretativo do Lobo Ibérico em Portugal na aldeia de Pitões das Júnias, concelho de Montalegre. Um notável investimento erguido numa bela aldeia do Barroso, terra
Património Agrícola Mundial. O projeto, focado nas populações selvagens deste predador e na história das suas relações com o homem, vai ao encontro de várias ações que vêm sendo feitas. Um exemplo está na plataforma loboiberico.pt com informações atualizadas sobre este caçador e com desafios a quem queira contribuir para a conservação desta espécie ameaçada. Na equipa podemos encontrar Francisco Álvares, um biólogo que esteve vários anos no município de Montalegre a investigar o modus vivendi deste incrível animal. Deixou um trabalho vultoso e uma memória que ainda hoje permanece no seio de tantos que tiveram o privilégio de privar com ele, como é o meu caso.
Ainda nesta órbita trago a lume “Malditos - Histórias de Homens e de Lobos”, livro do jornalista Ricardo J. Rodrigues que narra a relação de amor e ódio entre o homem e o lobo. Basta lembrar que, só no concelho de Montalegre, existem cerca de 40 fojos, estruturas em granito de paredes convergentes, conhecidas apenas no noroeste da Península Ibérica, que desaguam num fosso circular para onde os lobos eram encaminhados pela população, ritual que implicava que toda a aldeia e as aldeias vizinhas fizessem parte da batida. A última deste género terá ocorrido perto de 1950. No presente, os fojos integram percursos pedestres que atraem turistas à região.
Predador de alma, o lobo povoa o imaginário de crianças e adultos. Contra tanto escrito e falado, está provado que não ataca o homem. É um solitário. Por estes dias, foi tornado público que consegue percorrer mais de mil quilómetros. O animal investigado nasceu na Alemanha (Nordhorn). Entre 2020 e 2023, terá trilhado cerca de 1.240 km, tendo sido detetado em França em maio de 2022. Foi visto, pela última vez, em fevereiro de 2023 na cidade de Vilaller, na Catalunha. Três países em marcha. Sem parar e sem um único sinal de ataque humano.
Também por estes dias tropecei na notícia que os lobos de Chernobyl desenvolveram mutação genética que os pode ter tornado resistentes ao cancro. O estudo incidiu na zona de exclusão criada após a explosão (1986) de um dos reatores da central nuclear. Perto de 30 km de área verde – inclui parte da Ucrânia e Bielorrússia – habitada por animais selvagens e ainda proibida a humanos pelo elevado teor radioativo.
Não muito longe mora “Lobo Polar”, prisão erguida na Sibéria – 60 km a norte do Círculo Polar Ártico, na região de Yamalo-Nenets, e a quase dois mil quilómetros de Moscovo – onde esteve preso Alexei Navalny, principal opositor de Vladimir Putin, cuja morte, na cadeia, foi comunicada estes dias.
É nesta envolvência que perdura o fascínio deste místico animal. Um feitiço que tem tanto de atroz como mágico. Elevo-o ao patamar eterno, pelo modo como observa e por tanto que provoca. Um andarilho com rótulo de errante que mais não quer do que palmilhar a estrada em liberdade.

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“Lobo”

6 0
29.02.2024

A tarde tinha sido um bafo. Sem vento e com migalhas de pó, largadas pela passada da vezeira. Uma marcha sacudida pelo latir do cão e pelas palavras que saíam da boca do meu tio. O tempo era longo. Estendido por entre giestas, carvalhos, urzes, pinheiros e regatos. Ovelhas atrás e cabras à frente. Aqui e acolá uma parede esbarrondada vá lá saber-se por quem e por que motivo. Em quatro patas, a cabra era a mais acusada. Em duas, talvez o vizinho do lado ou o outro que foi lá meter o nariz depois da sachada que levou. Foi por entre este mastigar de suposições que nos deixamos cair no abraço da capa de burel para “botar a bucha”.
Dias antes, o meu tio tinha escutado no largo do povo que o lobo andava a rondar o gadinho. No romper dos anos 80, não era incomum o pastor trazer do monte uma ovelha mordida ou morta. Precavido, levou consigo preparo, o mesmo é dizer algo que metesse medo a um animal ainda hoje diabolizado.
A navalha estava sempre afiada. Por ela choravam cortes com a palma e o polegar a segurar o pão de centeio. Por cima, caía uma chouriça saída do lareiro em dias onde o borralho vencia o frio. Tudo era bucólico. Sereno. Os corpos, apoiados no cajado, olhavam para a brandura do cair da tarde. Foi por entre esta frugalidade que vi o mais notável animal, no cimo de um monte, em perseguição a uma ovelha. O sobressalto despertou o meu tio que galgou monte acima. Fiquei petrificado com o encalço que culminou num tiro que espantou, em definitivo, qualquer possibilidade de ricochete. O episódio ainda hoje vive em mim. Nunca mais esqueci o fascínio deste canídeo selvagem. Aconteceu........

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