O Secretário-Geral da ONU anunciou recentemente a criação de um Órgão Consultivo Multissetorial de Alto Nível sobre Inteligência Artificial (OCMANIA). Durante a conferência de imprensa do seu lançamento, a 23 de outubro de 2023, António Guterres compartilhou que a sua decisão foi motivada por ter tido “a experiência surreal de se ver a fazer um discurso num chinês impecável” numa aplicação de IA, muito embora não fale esse idioma.
Guterres solicitou a esse grupo de trabalho aconselhamento em três questões essenciais: a governança internacional da inteligência artificial, a construção de uma compreensão compartilhada dos seus riscos e desafios, e a utilização da IA para impulsionar de maneira mais rápida a consecução dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
Houve uma preocupação da parte do Secretário-Geral da ONU de fazer com que o OCMANIA tivesse equilíbrio de género, e representação geográfica e geracional diversificada entre os seus membros, mas também que eles fossem provenientes de uma diversidade de setores, nomeadamente governamental, empresarial, tecnológico, da sociedade civil e académico, para proporcionarem uma riqueza de perspetivas sobre as questões exploradas.
Todavia, quando prestamos atenção ao elenco de personalidades – 39 – escolhidas para integrar o OCMANIA, damo-nos contra de que, quiçá com a exceção do padre franciscano Paolo Benanti, conselheiro do atual Papa em matéria de ética da tecnologia, dele fazem parte sobretudo promotores, defensores e cultores da IA. Dito de outro modo, ficaram de fora os pensadores verdadeiramente críticos da IA, entre os quais aqueles que mais rapidamente me ocorrem: Kate Crawford e Benedetta Brevini.
A exclusão dessas autoras, mas não só, faz-me temer que o projetado relatório final do OCMANIA para meados do corrente ano, prelúdio à “Cimeira do Futuro” a ocorrer em setembro, repita as banalidades do relatório intercalar publicado em dezembro passado.
Recordo que Guterres, ainda no seu comunicado, salientou que a IA pode ter um papel relevante na ação climática e contribuir decisivamente para facilitar e acelerar a resolução da crise climática, aquela mesma que, segundo ele, “abriu as portas do inferno” e nos fez transitar de era do aquecimento global (global warming) para a era da ebulição global (global boiling).
Teria sido importante, por conseguinte, contar nesse grupo com Kate Crawford, que investigou com minúcia a infraestrutura física dos sistemas de IA, em particular os centros de processamento de dados, e os colossais recursos materiais, energéticos e hídricos que mobilizam. A investigadora australiana demonstrou claramente em Atlas of AI (2021) os perigos da visão miópica prevalecente em relação à IA como sendo algo imaterial, por um lado, e não natural, por outro lado, quando ela tem uma dimensão corpórea e um impacto no mundo natural enormes.
E teria sido igualmente benéfico poder nesse grupo estar inserida a académica italiana Benedetta Brevini que na sua obra Is AI good for the planet? (2021), dedicada ao estudo dos custos ambientais das aplicações de IA e onde explora múltiplos modos das tecnologias, máquinas e infraestruturas que utilizam IA exacerbarem o aquecimento global, nomeadamente através do referido consumo de recursos materiais pelo poder computacional que exigem, mas também por gerarem quantidades gigantescas de resíduos eletrónicos, agravando a poluição à escala planetária e, de modo paradoxal, por ajudarem as empresas de petróleo e gás a aumentarem a sua eficiência na extração de combustíveis fósseis.
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