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A marinha açoita a memória dos heróis de 1910

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04.05.2024

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Para Ailton Benedicto de Souza, in memoriam.

O oficial que se senta hoje na cadeira de comandante da Marinha sai de seus cuidados e de suas atribuições para imiscuir-se no que não lhe cabe, ao dar palpites injuriosos sobre projeto de lei já aprovado no Senado e presentemente em tramitação na Câmara dos Deputados. Da autoria do deputado Lindbergh Farias, a proposta, apoiada pelo Ministério Público Federal e combatida em termos inaceitáveis pela caserna, manda inscrever “no livro dos heróis da pátria” o marinheiro João Cândido, negro, filho de ex-escravos, líder vitorioso da Revolta da Chibata, em 1910, pois, em plena República, 38 anos passados da abolição da escravatura, o fiador da ordem e da disciplina na Marinha de guerra brasileira era ainda o castigo físico, brutal, ignominioso, covarde e racista: a tortura, a chibatada, a palmatória, a injúria, o aviltamento imposto aos praças, quase todos negros, pelos oficiais, sempre brancos e sempre filhos da classe dominante.

A injúria é um padrão ideológico.

Enquanto a chibata que aviltava o praça é, ainda hoje, um calo na história da corporação, o almirante Saldanha da Gama, conhecido como “terrível chibateiro” é venerado, encabeçando uma lista de torturadores fardados. Segundo Gastão Peralva o almirante Vandenkolk não se pejava de afirmar que mais valia a chibatada, como castigo ao réu confesso, do que “os maçantes e delongados conselhos de guerra”. Tobias Monteiro (Funcionários e doutores) registra que fora da medicina, do direito ou da engenharia, “eram os rebentos das famílias ricas encaminhados para o oficialato da Marinha”, enquanto o racismo e a violência física, desumanizante, era a lógica da disciplina militar. Um racismo que não pode escamotear sua essência classista.

Sem alento para oferecer conselhos de leitura ao atual chefe dos marinheiros, sugiro ao leitor as páginas de Adolfo Caminha (O bom crioulo) descrevendo o suplício de uma sessão de chibatadas. O comandante do navio palco da selvageria é o almirante Saldanha da Gama, também descrito por Gilberto Freyre como “aristocrata” e “fidalgo”. Refiro-me seguidamente ao almirante Saldanha da Gama porque o ódio ao marinheiro negro e libertador, se cola com a reverência da caserna, ainda hoje, ao almirante chicoteador. Enquanto Saldanha da Gama batiza o navio-escola da marinha – donde se conclui que a corporação abona seus crimes -- o marinheiro negro que livrou a marinha desse opróbrio-- é perseguido, mesmo passados 55 anos de sua morte. Contra essa miséria, em simbiose com a qual nascera a Marinha e com a qual a corporação mantinha sua disciplina de aço, dependente da destruição do caráter de seus marujos, levantou-se o Almirante Negro, e no campo de batalha em que se transformaria a Bahia de Guanabara, derrotou os fidalgos seus algozes, oficiais da classe dominante.

A revolta dos marinheiros, contra os castigos e os baixos salários, a escassa alimentação, o tempo de serviço exagerado, instalou-se no dia 22 de........

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