A dimensão da Psicologia Diferencial explica bem este caso – não gostamos de toda a gente assim como nem todos gostam de nós.

Na melhor das situações, toleramos o convívio ou a partilha de alguns instantes ou de alguns momentos com algumas das pessoas que não se dão connosco. Fazemo-lo por razões estratégicas ou de conveniência em prol de objetivos maiores, mas tendemos a viver como gostamos, com quem gostamos e onde gostamos.

O problema é que tal dimensão – viver como se gosta, com quem se gosta e onde se gosta – é mais próprio de anjos e santos do que de seres humanos. Muitas pessoas, hoje, vivem em cenários que detestam, junto de quem lhes faz mal e decerto vivem sem apreciar os dias que correm.

Penso em pessoas que vivem em favelas, reféns de gangues. Penso em pessoas que vivem em determinadas cidades, reféns de terrorismo. Penso em alunos que vivem em determinados colégios ou reformatórios. Os meus leitores estão a pensar em muita mais gente, também.

Seremos nós melhores do que eles, que vivem reféns dessa situação? Decerto que não. Mas então porque não se revoltam, porque não se libertam? Há muitas razões para essa dificuldade. Em primeiro lugar, eles – os maus da fita – são mesmo maus. São violentos, não seguem as regras do Direito, e muito menos da boa-educação. Em segundo lugar, foram cristalizando a sua situação e a situação alimenta-os. Ganham dinheiro com a corrupção, com o medo, com o tráfico. Nós, daqui, vemos que eles fazem mal às pessoas de bem. Mas vemo-lo porque temos esse luxo. As pessoas de bem, lá, veem a visão que eles têm do mundo, que lhes impõem do mundo. Essa visão assenta em quatro pilares clássicos.

O primeiro pilar é o de que, nós, os que estamos fora da cerca, somos injustamente privilegiados. Eles são os rebeldes que procuram a justiça à escala global. O segundo pilar é o da transcendência das suas intenções. As suas intenções têm inspiração divina, são o braço-armado de coletivos épicos, lutam em prol, no fundo, de um mundo melhor. O terceiro pilar é o do acolhimento. Eles acolhem aqueles que rejeitamos. Aqueles que rejeitamos na nossa indiferença, na nossa vaidade, orgulho, petulância ou normalidade são acolhidos. Achamos que eles acolhem os pobres, os loucos, os marginais ou os marginalizados. Em contrapartida, eles fazem de todos esses seres uns seres acolhidos, doutrinam-nos e preparam-nos para viver na cerca. O quarto pilar é o do contentamento na mediocridade. Viver com eles é bom, viver sem eles não é vida.

Mas não se pense que “Eles” só existem noutros países. Eles existem aqui. Nos clubes de futebol, nas autarquias, nas universidades, no mundo empresarial e, com certeza, nos recreios das escolas e nos parlamentos. Porque todo aquele que se agarra a uma cadeira, ao poder, à fome de prestígio e que impede que o ar novo limpe as ideias da sala é um “Ele”. O seu amor pelas coisas tornou-se obsessivo, dependem delas, reduziram-se a elas. E reduziram clubes, autarquias, universidades, empresas, escolas e parlamentos à pequenez dos seus seres.

QOSHE - Eles - Paulo Reis Mourão
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

Eles

10 4
07.12.2023

A dimensão da Psicologia Diferencial explica bem este caso – não gostamos de toda a gente assim como nem todos gostam de nós.

Na melhor das situações, toleramos o convívio ou a partilha de alguns instantes ou de alguns momentos com algumas das pessoas que não se dão connosco. Fazemo-lo por razões estratégicas ou de conveniência em prol de objetivos maiores, mas tendemos a viver como gostamos, com quem gostamos e onde gostamos.

O problema é que tal dimensão – viver como se gosta, com quem se gosta e onde se gosta – é mais próprio de anjos e santos do que de seres humanos. Muitas pessoas, hoje, vivem em cenários que detestam, junto de quem lhes faz mal e decerto vivem sem apreciar os dias que correm.

Penso em pessoas que vivem em favelas,........

© A Voz de Trás-os-Montes


Get it on Google Play