O desabafo de Di María nas redes sociais é bem o símbolo de uma nova comunicação que pode servir de vingançazinha, mas que nada comunica

A primeira entrevista que fiz com Ángel Di María, tinha ele acabado de ser campeão olímpico pela Argentina, nos Jogos de Pequim. Ainda trazia, orgulhosamente, a medalha de ouro no peito e era assediado por um autêntico enxame de jornalistas, porque tinha sido ele o autor do golo da vitória da sua seleção. Beneficiei da prioridade óbvia de Di María ter chegado poucos meses antes ao Benfica. E os leitores beneficiaram do tempo em que era consentido aos jornalistas fazerem jornalismo e falarem, de viva voz, com os artistas do mundo do desporto.

Aqueles que me conhecem sabem que não sou saudosista. Tenho orgulho no passado, mas percebi cedo, nesta minha longa carreira, que nenhum jornalista sobrevive se não respeitar o passado - o seu e o do jornalismo - mas também se não compreender o presente e se não aceitar o futuro.

Porém, não deverão ser só os jornalistas a acompanharem as mudanças no novo universo da comunicação. As últimas eleições legislativas vieram, aliás, provar a incapacidade de adaptação dos partidos políticos tradicionais para lidarem com a perceção do real, acima da própria realidade.

No desporto e, em particular, no futebol, a comunicação de clubes e seus principais protagonistas cristalizou-se numa fase transitória que não ata nem desata. Os jornalistas, afastados do mundo real em que vivem as grandes equipas, deixam triunfar o primado do opinador avulso e bem falante, os clubes não se atrevem a discutir seriamente novos modelos de comunicação e os jogadores sentem-se suficientemente confortáveis no uso e abuso de desabafos mais ou menos ácidos nas redes sociais, libertando-se da chatice de serem confrontados diretamente com perguntas indesejadas.

Foi neste quadro de incomunicabilidade efetiva que Di María respondeu aos críticos do futebol do Benfica com uma ironia que terá entendido como desconcertante: «Continuem a falar...»

14 março 2024, 21:22

Avançado argentino partilhou mensagem nas redes sociais após a vitória das águias frente ao Rangers, que permite a passagem aos quartos de final da Liga Europa

Seria uma maneira mais suave de traduzir aquele ditado português que lembra que as vozes de burro não chegam ao céu.

O problema de todo o tipo de comunicação de um só sentido é que não é, verdadeiramente, comunicação quando fica amputada de se confrontar com argumentação diferente. Di María estava naturalmente satisfeito pelo facto da sua equipa se ter qualificado para os quartos de final da Liga Europa, por ter participado no lance do golo da vitória e ainda por ter conquistado margem de manobra para o seu treinador, um profissional que o jogador argentino preza e reconhece como seu admirador.

Não lhe fica mal defender o seu treinador. No entanto, também não fica mal aos jornalistas conscientemente críticos do trabalho de Roger Schmidt afirmarem o que livremente pensam, sem correrem o risco de que um jogo ou um resultado os desminta. Porque não se trata, penso eu, na maioria dos casos, de qualquer embirração pessoal. Trata-se, apenas, de entender que Schmidt deveria explicar melhor por que razão chega a março sem uma equipa definida, por que razão não acerta com os defesas laterais, nem com o ponta de lança e até por que razão insiste em Di María, mesmo em jogos que obrigam a um elevado nível de controlo defensivo e muito para além do tempo de resistência física do jogador. Mas não foi Di María que fez o passe para o golo de Rafa? É um facto, tal como não pode ser questionável que o argentino de 36 anos continua a ser tecnicamente soberbo. O que está em causa não é o talento do jogador, mas o seu comprometimento, sobretudo em jogos de grande intensidade, a partir do momento em que o seu cansaço obriga a equipa a jogar com dez quando não tem bola.

QOSHE - Que continuem a falar... - Vitor Serpa
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Que continuem a falar...

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16.03.2024

O desabafo de Di María nas redes sociais é bem o símbolo de uma nova comunicação que pode servir de vingançazinha, mas que nada comunica

A primeira entrevista que fiz com Ángel Di María, tinha ele acabado de ser campeão olímpico pela Argentina, nos Jogos de Pequim. Ainda trazia, orgulhosamente, a medalha de ouro no peito e era assediado por um autêntico enxame de jornalistas, porque tinha sido ele o autor do golo da vitória da sua seleção. Beneficiei da prioridade óbvia de Di María ter chegado poucos meses antes ao Benfica. E os leitores beneficiaram do tempo em que era consentido aos jornalistas fazerem jornalismo e falarem, de viva voz, com os artistas do mundo do desporto.

Aqueles que me conhecem sabem que não sou saudosista. Tenho orgulho no passado, mas percebi cedo, nesta minha longa carreira, que nenhum jornalista sobrevive se não respeitar o passado - o seu e o do jornalismo - mas também se não compreender o presente e se não aceitar o........

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