«Mesmo que a rota da minha vida me conduza a uma estrela, nem por isso fui dispensado de percorrer os caminhos do Mundo»

Estou há meia hora à frente do computador a escrever e apagar reflexões sobre Cristiano Ronaldo, que na passada segunda-feira cumpriu 39 anos. Se em vez de computador ainda usasse máquina de escrever já teria amarrotado e mandado uma resma de folhas para o caixote do lixo. Assim, basta fazer… delete. O que escrever sobre CR7? Rio-me agora dos homens que criticam as mulheres por não saberem o que vestir com um guarda-roupa cheio; os mesmos que passam horas em frente a um frigorífico cheio sem saber o que comer… E aqui estou eu, sem saber por onde começar. Só sei que tenho 197 linhas nesta página para preencher…

Talvez começar por um devaneio. Imaginar um aceso debate entre críticos literários comparando os méritos e deméritos de José Saramago e Jorge Luis Borges, esquecendo os críticos que a partir de um certo patamar de excelência a comparação diminui apenas quem a faz. Há tanta beleza no vigor da prosa do escritor português quanto no desalinho dos poemas do escritor argentino. Ambos venceram o The Best, perdão, o Nobel, estou grato por ambos. Cristiano Ronaldo seguramente se identifica com o que escreve Saramago em Todos os Nomes: «O que dá verdadeiro sentido à vida é a busca; é preciso andar muito para se alcançar o que está perto.» E do mesmo Saramago haveria de citar: «Mesmo que a rota da minha vida me conduza a uma estrela, nem por isso fui dispensado de percorrer os caminhos do Mundo.»

Mas Cristiano Ronaldo haveria também de se inspirar no poema Felicidade, de Jorge Luis Borges: «Os livros da biblioteca não têm letras/quando os abro, surgem.» Como relvados que são páginas em... verde e que contam agora poemas e prosas de jogos memoráveis. Mas não, não vou escrever sobre isso, poderia dar um ar de presunção que não desejo. Tenho de encontrar outro ângulo…

Podia até escrever que só volto a escrever sobre Cristiano Ronaldo quando inventarem novos adjetivos, porque estão gastos os que existem pelo uso que lhes dou. Ou escrever uma carta aberta à Sociedade da Língua Portuguesa a sugerir que adotasse Cristiano como sinónimo de excelência e Ronaldo como outra palavra para definir ambição. Se aceitar a sugestão, ou assumo a Ronaldo de escrever um texto que tentasse atingir a Cristiano. Mas, passados uns segundos, apaguei tudo, o delírio estava a fugir-me de mão… O que escrever, então?

Ainda ensaiei evocar os Queen para falar dos 39 anos do King. 39 é um tema da minha banda de eleição: Escrita e interpretada por Brian May. «Nunca olhei para trás/Nunca tive medo/Nunca chorei.» Pensando bem, Cristiano Ronaldo terá olhado para trás, terá tido medo e seguramente chorou. Mas o espírito da letra é verdadeiro, Ronaldo nunca deixou de seguir em frente. Mas não, não vou meter os Queen ao barulho.

Continuando com 197 linhas por escrever, podia jogar pelo seguro e enumerar os troféus ganhos e os recordes batidos por Cristiano Ronaldo. Troféus e recordes que o tornam no maior jogador da história do futebol — repararam que escrevi maior e não melhor para retirar subjetividade à análise? — mas resolveria um problema para criar outro: de uma penada as 197 linhas em branco passavam a ser poucas para enumerar tantos troféus e recordes e há coisas que não se resumem. Ou se dizem por inteiro ou não se toca no assunto.

Tinha até preparada uma piada sobre um recorde de Cristiano Ronaldo de quem ninguém fala: o jogador que participou em mais jogos em que se gritou por Messi… Mais do que o próprio Messi… Eu próprio, pecador me confesso, já gritei Messi, mas por uma boa causa: acordar a besta em jogos que não estavam a correr bem… Mas lembrei o que a minha avó sempre me dizia: «Graças a Deus muitas; graças com Deus nenhuma.» E, pensando bem, não me quero meter numa discussão religiosa entre Cristianismo e Messianismo… Para mais, uma discussão sem sentido. Pelos nomes dá para perceber que estamos a falar da mesma religião...

Questionei-me se não seria interessante focar a dimensão mundial de Cristiano Ronaldo. Na história da humanidade, nenhum ser humano impactou com tanta gente e basta olhar para os números de seguidores nas redes sociais. E num assomo de orgulho patriota, haveria de concluir o texto vaticinando, com mais pompa do que circunstância, que se todos os portugueses tivessem metade do talento, foco, capacidade de trabalho e ambição de Cristiano Ronaldo, Portugal seria o mais desenvolvido país do Mundo. Porque Cristiano Ronaldo não nasceu para ser o melhor do Mundo, ele fez-se o melhor do Mundo.

Ainda comecei a escrever sobre o que se diz de Ronaldo quando se quer apoucar... Nos gastos que faz, por exemplo. De facto, somos os maiores a gerir o dinheiro dos outros, assim fôssemos com o nosso próprio dinheiro...

Podia até quebrar, apenas que parcialmente, uma promessa que fiz a uma prima enfermeira de não noticiar uma generosa oferta de Cristiano Ronaldo de vários ventiladores, durante a pandemia, ao serviço de internamento de um grande hospital, mas a oferta chegou com instruções de não ser divulgada. Podia lembrar a história de Erik Ortiz Cruz, bebé espanhol com displesia cortical focal; podia falar de Nuhazet Guillan, de 9 anos, com cancro em fase terminal, ambos generosamente ajudados por Ronaldo. Ou até falar do avião carregado de mantimentos para acudir às vítimas do terramoto da Turquia e Síria, mas tenho receio de que o texto se torne piegas ou, involuntariamente, muito moralista.

Talvez fosse mais divertido lembrar o conselho de Evra: «Se Ronaldo vos convidar para irem a casa dele almoçar, não aceitem… Vai ser muito chato. Peito de frango grelhado, salada e água…»

Ou do testemunho do guarda-redes Le Grant, companheiro de Ronaldo na segunda passagem pelo United: «Nos estágios, à sexta-feira tínhamos a benesse de poder comer um doce ou gelado à sobremesa. Na primeira sexta-feira, o Cristiano foi o primeiro a levantar-se para se servir. Escolheu uma peça de fruta. Ficámos a olhar uns para os outros e… ninguém se serviu de doce ou gelado…» Teria interesse falar disso?

Já passaram quase duas horas e continuo a ter 197 linhas para escrever. Podia desejar-lhe apenas os parabéns. E dizer-lhe que a minha mãe fez hoje um excelente bacalhau à Brás, o prato favorito de CR7, no delírio de que almoçasse cá por casa.

De tanto pensar nas palavras certas, esqueci que a resposta está muitas vezes nas palavras mais simples. E lembrei uma palavra que, por si só, dá para encher 197 linhas de texto: obrigado.

QOSHE - Hoje há bacalhau à Brás - Jorge Pessoa E Silva
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Hoje há bacalhau à Brás

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08.02.2024

«Mesmo que a rota da minha vida me conduza a uma estrela, nem por isso fui dispensado de percorrer os caminhos do Mundo»

Estou há meia hora à frente do computador a escrever e apagar reflexões sobre Cristiano Ronaldo, que na passada segunda-feira cumpriu 39 anos. Se em vez de computador ainda usasse máquina de escrever já teria amarrotado e mandado uma resma de folhas para o caixote do lixo. Assim, basta fazer… delete. O que escrever sobre CR7? Rio-me agora dos homens que criticam as mulheres por não saberem o que vestir com um guarda-roupa cheio; os mesmos que passam horas em frente a um frigorífico cheio sem saber o que comer… E aqui estou eu, sem saber por onde começar. Só sei que tenho 197 linhas nesta página para preencher…

Talvez começar por um devaneio. Imaginar um aceso debate entre críticos literários comparando os méritos e deméritos de José Saramago e Jorge Luis Borges, esquecendo os críticos que a partir de um certo patamar de excelência a comparação diminui apenas quem a faz. Há tanta beleza no vigor da prosa do escritor português quanto no desalinho dos poemas do escritor argentino. Ambos venceram o The Best, perdão, o Nobel, estou grato por ambos. Cristiano Ronaldo seguramente se identifica com o que escreve Saramago em Todos os Nomes: «O que dá verdadeiro sentido à vida é a busca; é preciso andar muito para se alcançar o que está perto.» E do mesmo Saramago haveria de citar: «Mesmo que a rota da minha vida me conduza a uma estrela, nem por isso fui dispensado de percorrer os caminhos do Mundo.»

Mas Cristiano Ronaldo haveria também de se inspirar no poema Felicidade, de Jorge Luis Borges:........

© A Bola


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