As declarações de Jorge Jesus e os despedimentos de futebolistas na Europa por emitirem opiniões políticas são um barómetro dos tempos atuais

E pronto, chegámos a isto: um treinador de futebol regressa momentaneamente a casa, é convidado a comentar a vida na Arábia Saudita em comparação com Portugal e quando confrontado com a ausência de liberdade de expressão no país onde trabalha solta um «Não, mas há segurança». O uso da conjugação adversativa por Jorge Jesus não é um mero detalhe. Entre a palavra não e o verbo associado a uma sensação cabe toda uma discussão resumida naquele mas. Como se estas três letras formassem uma balança de valores com toda a sua carga de subjetividade.

O técnico campeão por Benfica, Flamengo e mais que provável campeão saudita tem no entanto o mérito da transparência. O que outros enrolam, ele deslaça e chuta direto à baliza. Sempre o fez. Sim, para ele é mais importante poder andar na rua sem a mínima ameaça que por exemplo tinha no Brasil ou mesmo no Portugal de hoje que considera mais «inseguro» do que saber que um tipo pode ser detido apenas porque ousa discordar de quem o governa. Para ele e para todos os que beneficiam da bolha forrada a ouro e chão de veludo da liga local, conceitos como liberdade de pensamento e ação são minudências face à grande ordem.

Esta é somente mais uma confirmação de como o desporto e o futebol em particular permitem formar opinião e influenciar comportamentos. E o mais irónico é assistir, em sociedades europeias, a despedimentos de jogadores por motivos políticos, nomeadamente aqueles que se pronunciaram em defesa da Palestina na guerra Israel-Hamas. Se dúvidas houvesse sobre a polarização em que o mundo se encontra do ponto de vista das ideias e do maniqueísmo das discussões, o futebol ajuda a tirar dúvidas: os extremos vencem sempre, mesmo que no jogo jogado o extremo puro seja uma espécie em vias de extinção.

O desporto-rei é, aliás, um barómetro para aferir o estado de uma sociedade. Quando as limitações à liberdade de expressão para outros fins que não a crítica ao árbitro ou ao adversário se normalizam é sinal de que todos os que estão de fora aceitam-no tacitamente. Como uma necessidade em prol de um bem maior. «Sim, mas temos bola quase todos os dias».

Os comportamentos refletem épocas. Este silêncio cúmplice da classe dos futebolistas a nível internacional seria impensável com os Maradonas e Cantonas de há 30 anos. Por algum motivo estes jogadores ainda hoje são idolatrados pelo povo. Porque mostravam não só o que jogavam, mas também o que pensavam, sem filtros. Todos conhecíamos os seus defeitos, mas a identificação era maior porque ao revelarem as suas fraquezas eles não era mais do que seres humanos, fora das bolhas do Instagram e do TikTok, hoje por hoje as grandes fontes de informação de uma população que na história da Humanidade nunca teve tantos meios para se informar mas que está cada vez mais refém da ditadura do algoritmo em toda a sua superficialidade e acefalia, marcando a agenda, definindo eleições e forjando convicções.

A liberdade é um detalhe? «Sim, mas…»

QOSHE - Liberdade, esse detalhe - Fernando Urbano
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Liberdade, esse detalhe

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16.01.2024

As declarações de Jorge Jesus e os despedimentos de futebolistas na Europa por emitirem opiniões políticas são um barómetro dos tempos atuais

E pronto, chegámos a isto: um treinador de futebol regressa momentaneamente a casa, é convidado a comentar a vida na Arábia Saudita em comparação com Portugal e quando confrontado com a ausência de liberdade de expressão no país onde trabalha solta um «Não, mas há segurança». O uso da conjugação adversativa por Jorge Jesus não é um mero detalhe. Entre a palavra não e o verbo associado a uma sensação cabe toda uma discussão resumida naquele mas. Como se estas três letras formassem uma balança de valores com toda a sua carga de subjetividade.

O técnico campeão por Benfica, Flamengo e mais que provável........

© A Bola


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