No ano passado, escrevi o prefácio da nova edição de "A Convidada", primeiro romance de Simone de Beauvoir. Baseado no triângulo formado por Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre e Olga Kosakiewicz, o livro é uma espécie de confissão do desespero de uma mulher que se sentia prisioneira dos desejos dos outros. O que mais me chamou atenção no romance autobiográfico foi a recorrência da categoria "à mercê".

"Não sou ninguém... Não havia cura possível... Depois de tantos anos de serenidade triunfante, de dureza na conquista da felicidade, de exigências apaixonadas, iria se tornar, como tantas outras, uma mulher resignada?... Agora caíra na armadilha, encontrava-se à mercê da consciência voraz que esperara, no escuro, o momento de devorá-la. Ciumenta, traidora, criminosa".

Eu também fico desesperada quando me sinto "à mercê" da boa ou má vontade dos outros. Por exemplo, fui convidada para dar uma palestra fora do Rio de Janeiro e deixei a mala pronta dias antes, fiz o máximo e o melhor para que tudo saísse 100% perfeito. No dia anterior à viagem, descobri que o organizador cancelou o evento e se esqueceu de me avisar.

Costumo entregar a lista com as notas dos alunos dos meus cursos no primeiro dia do mês, mas a secretária só digitaliza no último dia, quando os outros professores entregam suas listas. E ela sempre se esquece de digitalizar a minha lista que desapareceu em alguma gaveta do departamento.

Fiquei noites e noites sem dormir, preocupada com o prazo final da defesa de tese de doutorado de um orientando. Certo dia ele me perguntou de um jeito bem debochado: "Mirian, por que você está tão preocupada? Se eu não defender a tese, sua vida não muda nadinha. Já a minha... Por que você não está dormindo se eu estou dormindo como um anjo?".

Não adianta nada repetir como um mantra a Oração da Serenidade: "Concedei-me, Senhor, a serenidade necessária para aceitar as coisas que eu não posso mudar, coragem para mudar aquelas que eu posso, e sabedoria para distinguir umas das outras".

Nas horas de "sofrimento absoluto", releio "Meditações", de Marco Aurélio, meu livro de cabeceira.

"Dizer para si mesmo, ao amanhecer: ‘Sei que vou encontrar um indiscreto, um ingrato, um grosseiro, um velhaco, um invejoso, um intolerante. Mas esses homens são assim devido à sua ignorância do bem e do mal... Sei que não me poderão macular suas feias ações... Muitos lazeres ganha o que não se preocupa com o que o próximo disse, fez, pensou, mas preocupa-se tão somente com o que ele próprio faz, para o fazer de modo justo e santo! Em outras palavras, não contemplar o que Agatão chamava de ‘almas sinistras’, mas seguir sem desvios, no caminho reto".

Marco Aurélio sempre me ajuda a sofrer um pouco menos com a perversidade das "almas sinistras".

"Jamais te deixes influenciar pelas censuras ou pela maledicência... Concentra-te na arte que aprendeste, e ama-a. Não seja tirano nem escravo de ninguém... Diante de qualquer fato que te cause desgosto, lembra-te de recorrer a esta reflexão: isto não é uma infelicidade, mas suportar corajosamente é uma felicidade... É loucura tentar o impossível. Também é impossível que os maus não pratiquem o que está em sua índole... Alguém procedeu mal comigo? Isso é com ele. A deliberação é dele, a ação é dele... Eis a melhor maneira de se vingar: não se lhes assemelhar".

Tenho sentido muita saudade do meu amigo Betinho, o Herbert José de Sousa, que me contou a fábula do beija-flor.

"Há muito tempo atrás uma floresta começou a pegar fogo. Todos os animais fugiram para salvar a própria pele. Um leão parou de correu quando viu um beija-flor pegando com seu bico a água do rio, jogando no fogo e voltando para o rio. ‘Ah, beija-flor, você acha que sozinho vai apagar este fogaréu todo?’, o leão perguntou. O beija-flor respondeu: ‘Sei que não posso apagar o incêndio sozinho; estou apenas fazendo a minha parte’".

Quando estou sofrendo por me sentir "à mercê" da perversidade ou maledicência de alguém, procuro me convencer de que não tenho o menor controle sobre os comportamentos dos outros. Como o beija-flor, só posso fazer a minha parte.

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Sei que não posso apagar o incêndio sozinha, estou apenas fazendo a minha parte

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27.03.2024

No ano passado, escrevi o prefácio da nova edição de "A Convidada", primeiro romance de Simone de Beauvoir. Baseado no triângulo formado por Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre e Olga Kosakiewicz, o livro é uma espécie de confissão do desespero de uma mulher que se sentia prisioneira dos desejos dos outros. O que mais me chamou atenção no romance autobiográfico foi a recorrência da categoria "à mercê".

"Não sou ninguém... Não havia cura possível... Depois de tantos anos de serenidade triunfante, de dureza na conquista da felicidade, de exigências apaixonadas, iria se tornar, como tantas outras, uma mulher resignada?... Agora caíra na armadilha, encontrava-se à mercê da consciência voraz que esperara, no escuro, o momento de devorá-la. Ciumenta, traidora, criminosa".

Eu também fico desesperada quando me sinto "à mercê" da boa ou má vontade dos outros. Por exemplo, fui convidada para dar uma palestra fora do Rio de Janeiro e deixei a mala pronta dias antes, fiz o máximo e o melhor para que tudo saísse 100% perfeito. No dia anterior à viagem, descobri que o organizador cancelou o evento e se esqueceu de me avisar.

Costumo entregar a lista com as notas dos alunos dos meus cursos no primeiro dia do mês, mas a secretária só digitaliza no último dia, quando os outros professores entregam suas listas. E ela sempre se esquece de digitalizar a........

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