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Resposta ao Dr. Pacheco Pereira

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Certo dia, já há cerca de dez anos, fui convidado a um casamento de uma amiga na vila da Marmeleira. Após a cerimónia na igreja matriz local, cá fora no adro, houve direito a beberete acompanhado de música ao vivo. Dado o burburinho, numa das casas solarengas que enfrentam a igreja, abriu-se uma das portadas no primeiro andar. Lá de dentro, da penumbra, com ar desconfiado e surpreso, apareceu à varanda em pose senhorial um homem mais velho, de venerandas barbas brancas, notoriamente não habituado ao escarcéu que por ali decorria na praça principal da vila. Era o Dr. Pacheco Pereira. E, seja em carne e osso, pela televisão, apenas em som pela rádio, ou sequer em discurso indirecto pela leitura, aquela foi a última vez que o vi. Isto até esta semana em que resolveu, mesmo sem me nomear, citar-me na sua crónica habitual do “jornal” Público.

Em boa verdade, a coisa sabe desde logo a ironia. Não lendo, escutando ou vendo o Dr. Pacheco, foi mesmo pelas redes sociais por ele tão vilipendiadas que me chegou o produto do seu fino espírito crítico a propósito do livro 50 Vezes 25 de Novembro, obra na qual tive o prazer e a honra de colaborar. Melhor ainda! A análise — profunda, imperial — do Dr. Pacheco começa, como aliás não poderia deixar de ser com tão afamado académico, com a dita citação, no caso, imagine-se o meu pasmo, das minhas próprias palavras. Aliás, li duas vezes para ter a certeza que tão ilustre sócio (correspondente) da Secção de Letras da Academia de Ciências de Lisboa não cometeria a indelicadeza de citar um texto sem nomear o autor das palavras que intentou comentar.

Estranhamente, foi o caso. Quem diria que tão nobre alma, ainda para mais de um distinto portador da Grã-Cruz da Ordem da Liberdade, seria capaz de descer tão baixo ao ponto de se propor a escrever uma crónica inteira sobre um livro, citando e comentando sem ter a decência de nomear a pessoa que resolveu enxovalhar em praça pública? Para meu espanto, ninguém ao meu redor se surpreendeu.

Mas divirjo. A citação em causa, a tal que serviu de ponto de partida para o artigo do Dr. Pacheco, foi precisamente a frase de abertura da minha contribuição para a referida obra e versa assim: “Historicamente, os eventos passados em 25 de Novembro de 1975 (…) serão os mais importantes e decisivos em Portugal desde 28 de Maio de 1926.” E daqui partiu o douto Dr. Pacheco para variadíssimas considerações, as quais passo a mencionar. Primeiro, que o livro é escrito por uma cambada “na sua maioria de extrema-direita, muitos do Chega, candidatos autárquicos, membros do “governo-sombra”, do ADN, da ala passista do PSD e da multidão de repetidores, nas redes sociais, em podcasts e na academia, das posições do Chega”.

E mais. Diz o Dr. Pacheco que “se há extrema-direita e direita radical em Portugal ela está representada neste livro”. Extraordinário. Militantes do Ergue-te! que se assumem de extrema-direita? Népia. Membros de milícias abertamente racistas? Nicles. Activistas presos por ideias que assumem ser radicais e historicamente conotados com o fascismo e o nazismo? Que nada! Não, maus, mesmo maus, maus a sério, de extrema-direita, diz o Dr. Pacheco, são estes “falseadores da História” que se atrevem a assumir o 25 de Novembro de 1975 como, e volta a citar-me sem me nomear, “o farol ideológico do sistema político que sucederia ao Estado Novo”.

Mas não fica por aqui o nobre historiador Dr. Pacheco. Em seguida, larga o supra-sumo da intelectualidade moderada indígena, do alto do seu reluzente pedestal, o resumo da intenção do livro. Explica ele que “há dois aspectos preliminares que são relevantes: um é a desvalorização e, em alguns casos, a diabolização do 25 de Abril – como se vê na citação que passa de 1926, a data do golpe militar que abriu caminho a 48 anos de ditadura, ao 25 de Novembro –, e outro a dança das palavras simpáticas e fofas para caracterizar entre o positivo e o neutro essa mesma ditadura. O resto é uma tentativa de legitimar a força da direita radical no presente dando-lhe uma ‹‹história›› falsa e uma memória manipulada para, olhando para o passado, terem alguma coisa de aceitável para lembrar.”

Depois, é no apogeu do arrebatamento que o génio das letras se revela verdadeiramente. O Dr. Pacheco, alma artística poeticamente atormentada pelos tenebrosos fantasmas do seu passado clandestino, vê, ou julga ver, em tudo o que mexe e respira os reflexos da sua própria neurótica angústia. Vai daí e, soltando a pena, outro nome para franga, de diafragma palpitante de emoção, pleno de inspirada visão, discorre então o nosso historiador sobre as sevícias terríveis do Estado Novo, de Salazar, do Fascismo, do Apartheid, do Nazismo, da miséria, da perseguição, da tortura,........

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