Tudo é possível na América?
O processo é tão velho como o mundo: para se criar um clima de ódio em relação a um inimigo a eliminar é necessário retirar-lhe a humanidade, despojá-lo de afectos, pintá-lo como infra-humano ou supra-humano, como animal inferior ou demónio todo-poderoso, como alguém que não é “nós”. Isto pode fazer-se em relação a um indivíduo ou a um colectivo – os judeus, os cristãos, os muçulmanos, os asiáticos, os negros, os brancos; ou a outras categorias nacionais, tribais ou mesmo político-sociais, como os comunistas, os fascistas, os revolucionários, os reaccionários, os burgueses.
Historicamente, foi esse o espírito das guerras religiosas. Também por isso os séculos XVI e XVII até ao fim da Guerra dos Trinta Anos foram tempos de grande selvajaria entre cristãos: da matança de S. Bartolomeu aos “feitos” dos suecos de Gustavo Adolfo na Baviera católica, a crónica está aí e pode ler-se.
A Revolução Francesa, começada sob a invocação dos iluminados discípulos de Rousseau e Voltaire contra a obscurantista monarquia teocrática, transformou-se bem depressa, com Robespierre e o Terror, numa hecatombe para todos os que não fossem suficientemente iluminados, revolucionários, “virtuosos”. E o Incorruptível foi claro em relação ao lema que presidiria a toda a ideologia revolucionária do Progresso, a causa da nova “guerra santa”, associando a Virtude ao Terror, num pacto de ferro:
“La Vertu, sans laquelle la Terreur est funeste; La Terreur, sans laquelle la Vertu est impuissante.”
Este enunciado Virtude-Terror-Virtude (“A virtude, sem a qual o terror é fatal; e o terror, sem o qual a virtude é impotente”) vai ser, com variantes, a justificação de dois séculos de tiranias, violências, hecatombes e genocídios em nome da virtuosa conquista do melhor dos mundos.
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Mas o maniqueísmo secular, uma mistura visceral de Moral e de Política que passou pela diabolização do inimigo e pelo perigoso aforismo de os (bons) fins justificarem os (maus) meios , tocou sobretudo a Esquerda mas não tocou só a Esquerda.
Em 1920 Lothrop Stoddard publicou The Rising Tide of Color Against White World Supremacy, com o tenebroso assalto à civilização das desumanizadas “raças de cor” na capa. Curiosamente, Scott Fitzgerald, no Great Gatsby, refere o livro e o autor, com nomes próximos dos originais, como leitura de cabeceira do vilão Tom Buchanan: “Have you read The Rise of the Colored Empires by this man Goddard?” (Por muito tempo pensei que Fitzgerald se referia ao segundo volume de A Decadência do Ocidente de Spengler, que já tinha sido traduzido com........
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