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Camões: o poeta cego, surdo e mudo

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08.06.2024

Por má fortuna, os quinhentos anos do que se convencionou ser o nascimento de Camões coincidiram com cinquenta anos do 25 de Abril. E o tempo, o modo e os fundos alocados pelo Estado às comemorações do Regime contrastaram flagrantemente com a incúria e a modéstia de fundos destinados à celebração do épico. E assim tinha de ser. O combatente do Império no Norte da África e na Índia, cantor exaltado e exaltante de feitos de guerra e de conquista, homem de sensibilidade, subtileza, erudição e experiência, capaz de dar voz ao contraditório e a todas vãs cobiças, capaz também de se deixar cativar por uma “cativa”, pode ser um homem para todos os tempos e estações… para todos, menos para este. Ou é-o pela ausência, pelo vazio, pela amordaçada mudez, pela surdez induzida e pela cegueira metafórica que a moeda comemorativa tão bem ilustra. Num tempo de maniqueísmo simplista, contrição oca e ignorância induzida, Camões só poderia ter lugar como saco de vento e “poeta cego”, ou mais precisamente, na designação oficial da moeda, como “efígie estilizada do poeta cego, com uma coroa de louros e uma gola típica do século XVI”. E depois havia ainda o colonialismo, o imperialismo, o “nacionalismo exacerbado”, a todos os títulos hostis a globalismos, federalismos e multiculturalismos generalistas.

Assim – e também pela qualidade formal e estilística e pela lucidez no juízo dos homens e dos tempos – era, desde logo, natural que Camões não despertasse grande entusiasmo entre a classe política dirigente e a intelectualidade desta Terceira República.

“Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram,
Cale-se de Alexandre e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram,
Que eu canto o peito ilustre Lusitano
A quem Neptuno e Marte obedeceram;
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.”

…Cale-se e cesse também Camões e o seu ilustre peito lusitano que outros valores (mais altos?) se alevantam. Que valores exactamente não sabemos; sabemos só que não são nem podem ser os do “peito ilustre lusitano”.

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Temo que Vasco da Gama, cujos 500 anos da morte também se cumprem este ano, em 24 de Dezembro, véspera de Natal, não venha a conhecer........

© Observador


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