Temos assistido ao crescimento de uma narrativa que baseia a defesa do agressor na sua craveira intelectual. É uma teoria falhada, de natureza empalhada, embalsamada num museu de horrores naturais, e que tem encontrado adeptos nada acidentais: aqueles que defendem a liberdade de entrar como um “caterpillar” na liberdade dos outros numa terraplenagem medieval de muitas conquistas civilizacionais inquestionáveis. Não é pelo facto de serem intelectuais ou pensadores que se pode desculpar o que dizem, escrevem e defendem. Pelo contrário, não é um delito de opinião o que está em causa. A sua condição de privilegiados, por serem academicamente capazes de distinguir o bem do mal ou o essencial do acessório, só os engravida em gravidade por terem a exacta noção do que defendem e representam. A sua craveira intelectual não lhes atribui autoridade, apenas adensa o ar irrespirável nas suas latrinas.

É aqui que encontramos a compilação de textos da loja de horrores de Passos e Otero, entre outros, nomes de família de Pedro e Paulo, “donos” de uma família que é só deles e que só eles deviam explorar, uma mina de ouro de virtudes colonizadas pela misoginia e supremacia moral vetusta. A “Identidade e família”, versão bolor, trouxe a literatura para o campo do “mainstream” e do “prime time” televisivo, não por uma súbita paixão pelos livros mas porque o que aqui está em causa é mesmo um ataque anedótico à realidade e ao que existe, uma dose de mofo servida por intelectuais que querem voltar a servir os costumes numa casa portuguesa, com pão e vinho sobre a mesa, a respirar a alegria da pobreza de dar uns trocos à mulher pelo trabalho de se manter no domicílio, na casa e nos seus trabalhos, para gáudio do marialva “pater familias” que assim vê as suas filhas bem criadas. Sim, porque aos filhos varões eles ainda podem dar uns conselhos.

Não, nem tudo é reversível em democracia. Os direitos fundamentais não se referendam, as conquistas societárias não se questionam. Não, os seus escravos não vão voltar para as senzalas nem as suas mulheres para os pratos. Lamentamos. É difícil imaginar um pior momento para pessoas com responsabilidade saírem da sua realidade mata-borrão e assombrarem a vida dos outros com ideias já vendidas ao ocaso da História. Mas eis que eles vêm e são, assim, a personificação costumeira de muitos males que pretendemos abater.

*O autor escreve segundo a antiga ortografia

QOSHE - A natureza do mofo - Miguel Guedes
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A natureza do mofo

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12.04.2024

Temos assistido ao crescimento de uma narrativa que baseia a defesa do agressor na sua craveira intelectual. É uma teoria falhada, de natureza empalhada, embalsamada num museu de horrores naturais, e que tem encontrado adeptos nada acidentais: aqueles que defendem a liberdade de entrar como um “caterpillar” na liberdade dos outros numa terraplenagem medieval de muitas conquistas civilizacionais inquestionáveis. Não é pelo facto de serem intelectuais ou pensadores que se pode desculpar o que dizem, escrevem e defendem. Pelo contrário, não é um delito de opinião o que está em causa. A sua condição de........

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