Ao assumir o poder, nas altas esferas da política, um dos primeiros passos que um dirigente tem pela frente é a nomeação do seu chefe de gabinete. É uma decisão complexa, logo reveladora do estilo de quem acaba de receber um mandato de liderança. A escolha exige uma ponderação por demais cuidadosa. E quando se erra, não pode haver hesitação: demite-se o interessado, com aliás se deve demitir os ministros que se revelem incompetentes, arrogantes, corruptos ou apenas preocupados com a sua agenda pessoal.

Conheci, ao longo de décadas e em várias situações, toda uma gama de chefes de gabinete de presidentes ou primeiros-ministros. Alguns funcionavam como meros guardiões da porta de acesso, outros como uma espécie de primeiros-ministros alternativos, que tudo filtravam e só deixavam subir ao escalão superior aquilo que bem entendiam. Era prudente manter uma relação cautelosa com o titular da função. Muitas das decisões acabariam por ser tomadas a esse nível. Eu mesmo fui pressionado, em dada altura, para que aceitasse um chefe de gabinete cheio de genica, que seria os olhos, os ouvidos e até mesmo a mão de um dos membros permanentes do Conselho de Segurança. Não foi fácil dizer que não. Mas dispunha de um argumento de peso: o fulano vinha de um país do Norte e eu, estando acima de tudo a negociar com países do Sahel e do Sul, precisava de alguém que fosse mais facilmente aceite por esse conjunto de Estados. Não podia haver um português à frente da missão, com um chefe de gabinete europeu a acrescentar. O argumento era claro, a minha determinação ainda maior, e o meu candidato, vindo do Togo, acabou por ser confirmado.

Quem não se lembra, nas gerações mais seniores, da série britânica, Yes, Prime Minister? Os episódios, concebidos com o humor próprio dos ingleses, mostravam duas coisas: o medo que o chefe de gabinete inspirava, dominando assim as decisões do chefe, e a preocupação do primeiro-ministro apenas com o seu lugar na fotografia. Na altura, o que contava era a encenação perante o Parlamento de Westminster. Agora, a inquietação diz respeito à imagem projetada pelos canais televisivos. O primeiro-ministro pode errar na escolha dos seus colaboradores, na reforma da saúde, da educação, da justiça, da segurança interna, pode ser um indeciso, um gestor de equilíbrios apenas preocupado com as alianças que o mantenham no poder, mas precisa de se fazer passar por alguém que inspire confiança, aparecer como um político bem-falante e sem medo de atacar os seus adversários. Ganhará ainda mais se os atacar com firmeza e elegância.

A imagem continua a ser a principal aflição de quem tem ambições políticas. Nos vários palcos europeus, essa é agora a questão, tendo em conta as eleições para o Parlamento Europeu de junho de 2024 e os cargos que estarão em jogo no seu rescaldo, a que acrescerá a eleição do novo Secretário-geral da NATO.

Neste último caso, o candidato com mais hipóteses parece ser Mark Rutte, primeiro-ministro dos Países Baixos desde 2010. Tem experiência e estilo, embora tenha um inconveniente que eu exploraria se estivesse em concorrência com ele. O seu país ocupou essa mesma responsabilidade entre 2004 e 2009. É altura de dar essa oportunidade a um outro. A primeira-ministra da Estónia, Kaja Kallas, poderia ser uma alternativa. Tem, no entanto, o enorme inconveniente de ser uma opositora declarada das políticas atuais do Kremlin e, para mais, proveniente de um país de pequena dimensão e que faz fronteira com a Rússia. Ora, a próxima liderança da NATO requer a escolha de uma personalidade que envie um sinal de que, mais cedo ou mais tarde, o diálogo com a Federação Russa será retomado. Nessa perspectiva, uma candidatura alemã faria mais sentido. O obstáculo reside, no entanto, no facto da Alemanha já estar à cabeça da União Europeia. Não pode ser vista ao leme de várias instituições ao mesmo tempo.

É muito provável que Ursula von der Leyen continue na presidência da Comissão Europeia. A sua família política deverá conseguir eleger o maior número de deputados europeus, apesar da concorrência dos partidos populistas. Mas poderá precisar do apoio extra dos parlamentares populistas para obter um segundo mandato. Se assim for, a negociação poderá levar um país governado por uma coligação que inclua populistas a procurar obter a presidência do Conselho Europeu. A realidade é que o número de coligações desse género tem vindo a aumentar no seio da UE. Nesse caso, as chances de um candidato socialista ficariam reduzidas.

Conselheiro em segurança internacional. Ex-secretário-geral-adjunto da ONU

QOSHE - Sobre as lideranças, dos gabinetes às instituições europeias - Victor Ângelo
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Sobre as lideranças, dos gabinetes às instituições europeias

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15.12.2023

Ao assumir o poder, nas altas esferas da política, um dos primeiros passos que um dirigente tem pela frente é a nomeação do seu chefe de gabinete. É uma decisão complexa, logo reveladora do estilo de quem acaba de receber um mandato de liderança. A escolha exige uma ponderação por demais cuidadosa. E quando se erra, não pode haver hesitação: demite-se o interessado, com aliás se deve demitir os ministros que se revelem incompetentes, arrogantes, corruptos ou apenas preocupados com a sua agenda pessoal.

Conheci, ao longo de décadas e em várias situações, toda uma gama de chefes de gabinete de presidentes ou primeiros-ministros. Alguns funcionavam como meros guardiões da porta de acesso, outros como uma espécie de primeiros-ministros alternativos, que tudo filtravam e só deixavam subir ao escalão superior aquilo que bem entendiam. Era prudente manter uma relação cautelosa com o titular da função. Muitas das decisões acabariam por ser tomadas a esse nível. Eu mesmo fui pressionado, em dada altura, para que aceitasse um chefe de gabinete cheio de genica, que seria os olhos, os ouvidos e até mesmo a mão de um dos membros permanentes do........

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