"A passagem de um modelo de Forças Armadas baseado no Serviço Militar Obrigatório (SMO) para umas Forças Armadas de profissionais e contratados representa uma profunda alteração qualitativa numa área particularmente sensível e de uma enorme importância para a credibilidade externa do Estado. Um salto como esse exige, absolutamente, ponderação, previsão completa dos efeitos do novo sistema, e clara definição da resposta a dar aos problemas emergentes. (…) Os desafios fundamentais para o modelo de Forças Armadas de profissionais e contratados são essencialmente quatro: primeiro, o sistema tem de garantir que consegue produzir o número de aderentes (profissionais e contratados) considerados necessários para as missões e sistema de forças em tempo de paz; segundo, o sistema deve conter os mecanismos necessários para o crescimento necessário das Forças Armadas para as situações de exceção, incluindo a guerra; terceiro, deve ficar garantida uma correta compreensão por parte da população sobre os deveres gerais militares que sob ela impelem, no quadro do dever de defesa da Pátria; quarto, deve estar garantido que não se cria um fosso entre as Forças Armadas e o país. (…) Para acabar com o SMO teria de se abrir os cordões à bolsa, propondo remunerações atrativas, incentivos concretos e não balelas como doutoramentos e mestrados, e muita flexibilidade na gestão destes incentivos ano a ano. A questão teria de se pôr aqui como com uma qualquer outra atividade. A partir do momento em que as Forças Armadas têm de concorrer no mercado para arranjarem soldados, têm que ter meios para vencer a competição.”

Poucos seriam os políticos que, atualmente, não subscreveriam esta declaração feita na Assembleia da República em 1999 - cinco anos antes do fim do SMO, que acabaria em 2004. O prognóstico de João Amaral, o já falecido deputado do Partido Comunista Português, bateu certo em tudo. Em 2023, o efetivo das Forças Armadas caiu para o número mais reduzido da história - pouco mais de 21 mil - significando 68% dos 30 840 autorizados pelo decreto-lei 6/2022, de 07 de janeiro, valor esse ainda mais crítico se tivermos em conta o valor superior do intervalo (30 mil - 32 mil) previstos na Reforma Defesa 2020, de 2013.

Os mecanismos, incentivos e planos (como o Plano de Ação para a Profissionalização do Serviço Militar de 2019, atualizado em 2023) para fazer crescer este efetivo fracassaram.

Os “deveres militares” da população e a “defesa da pátria” não são temas virais nas redes sociais frequentadas pela camada mais jovem. Quanto ao “fosso”, esse foi sendo escavado, fundamentalmente, pela incúria e desinteresse consciente (não foi, certamente, por falta de avisos) de sucessivas políticas públicas que foram retirando cada vez mais direitos aos militares. Foi exceção o período em que uma equipa das Forças Armadas, coordenada pelo atual chefe do Estado-Maior da Armada, Gouveia e Melo, organizou com sucesso internacionalmente aclamado a vacinação contra a covid-19, momento em que todos perceberam a eficácia dos militares em momentos de crise.

Praticamente um quarto de século depois das palavras proféticas de João Amaral, eis que chegámos a 2024 e o monstro de uma guerra na Europa, outra no Médio Oriente, mais ameaças terroristas tão perto, nos obrigam ao inimaginável: olhar para os nossos filhos, meninos e meninas, adolescentes em casa - com toda a sua ingenuidade e frescura de quem sempre viveu em democracia e em paz - e vê-los tragicamente feridos ou mortos pelas sombras de campos de batalha. Intuitivamente é esta a primeira reação que todos, ou a maioria, dos pais terão. Uma geração que também ela cresceu em paz.

É exigível, porém, ser responsável e, seguindo o lema sempre proclamado por quem trabalha na área da segurança e emergência, esperar o melhor, preparando-nos para o pior. Em alternativa ao dantesco cenário, podemos ver os nossos filhos consciente e livremente a serem treinados para se defenderem, preparados para toda uma miríade de funções que podem comportar a defesa nacional e que incluem muito mais do que uma trincheira.

Consciente e livremente, porque sentindo que vale a pena, não é preciso sequer um SMO. Para tal, como sublinhou Gouveia e Melo, é preciso transformar o serviço militar numa “fase da vida dos jovens que tenha utilidade para a sua qualificação e perspetivas de futuro” e “ter mais imaginação” para aumentar o interesse destas camadas da população que, parecendo, muitas vezes, “alienadas das suas obrigações”, como apontou o almirante, estão cientes, mais que nunca, dos Direitos, Liberdades e Garantias que é preciso proteger no nosso Estado integrado numa União Europeia construída sobre esses pilares.

A questão remuneratória é, sem dúvida, essencial rever se se pretende atrair jovens qualificados. Criar uma espécie de gap year, ou “pausa sabática” entre o ensino secundário e a universidade, durante o qual cada estudante pode escolher uma área do seu interesse no Exército, Força Aérea, Marinha - ou até na Proteção Civil / Bombeiros - não é uma ideia original (existe no Reino Unido, pelo menos) mas poderá ser um começo.

Não sabemos quanto tempo ainda teremos para pensar e ser imaginativos, mas dita o bom senso que não demoremos.

Depois de uma campanha eleitoral em que o tema Defesa esteve arredado dos debates e nenhuma ideia criativa consta dos programas eleitorais, será um exercício desafiante para o novo ministro da Defesa, Nuno Melo, que se orgulha de ter cumprido serviço militar e é presidente de um partido que também votou pelo fim do SMO.

Diretora adjunta do Diário de Notícias

QOSHE - Se valer a pena não é preciso obrigar ninguém - Valentina Marcelino
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Se valer a pena não é preciso obrigar ninguém

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05.04.2024

"A passagem de um modelo de Forças Armadas baseado no Serviço Militar Obrigatório (SMO) para umas Forças Armadas de profissionais e contratados representa uma profunda alteração qualitativa numa área particularmente sensível e de uma enorme importância para a credibilidade externa do Estado. Um salto como esse exige, absolutamente, ponderação, previsão completa dos efeitos do novo sistema, e clara definição da resposta a dar aos problemas emergentes. (…) Os desafios fundamentais para o modelo de Forças Armadas de profissionais e contratados são essencialmente quatro: primeiro, o sistema tem de garantir que consegue produzir o número de aderentes (profissionais e contratados) considerados necessários para as missões e sistema de forças em tempo de paz; segundo, o sistema deve conter os mecanismos necessários para o crescimento necessário das Forças Armadas para as situações de exceção, incluindo a guerra; terceiro, deve ficar garantida uma correta compreensão por parte da população sobre os deveres gerais militares que sob ela impelem, no quadro do dever de defesa da Pátria; quarto, deve estar garantido que não se cria um fosso entre as Forças Armadas e o país. (…) Para acabar com o SMO teria de se abrir os cordões à bolsa, propondo remunerações atrativas, incentivos concretos e não balelas como doutoramentos e mestrados, e muita flexibilidade na gestão destes incentivos ano a ano. A questão........

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