Yves Leonard apaixonou-se por Portugal há décadas, quando aos 20 anos visitou o nosso país como turista. Era o início dos Anos 1980 e mal podia o jovem francês imaginar que não só voltaria muitas vezes, como Portugal se ia tornar no tema principal do seu trabalho como historiador. Depois de o entrevistar, em 2017, a propósito de Histoire du Portugal Contemporain, de 1890 à nos Jours, voltámos a falar em 2020 a propósito do 25 de Abril. Agora foi o seu livro História da Nação Portuguesa que me levou a um frente a frente com Leonard em Lisboa, com a conversa a conduzir-nos inevitavelmente a Salazar, cuja biografia editou em outubro em Portugal, antes ainda de ser publicada em França.

Mas porquê o meu interesse? Em primeiro lugar por se tratar de um historiador, mas também por ser francês. Criada em Lausanne, na Suíça de língua francesa, cresci a ver os canais franceses, a seguir a política francesa e, claro, a ver os filmes e ouvir as canções francesas. De volta a Portugal, felizmente mantive o francês suficientemente oleado para como jornalista me tornar na "francófona de serviço" capaz de dar a Yves Leonard um descanso na série de entrevistas que já dera num excelente português. Afinal mesmo quem, como o historiador, fala a nossa língua, não esconde a felicidade de poder voltar à sua língua materna. Nem uma certa surpresa ao encontrar uma interlocutora fluente com menos de 50 anos.

Língua de cultura durante muito tempo em Portugal, o francês acabou ultrapassado pelo inglês nas últimas décadas, no nosso país como em quase todo o mundo. Mas não foi esquecido, ou não fosse a França ainda a sétima economia mundial (segunda da União Europeia, a seguir à alemã) e uma potência inegável a nível cultural - basta pensar que só desde 2008, três franceses vencerem o Nobel da Literatura. Hoje continua-se, pois, em Portugal a ler livros em francês, a ver séries e filmes em francês - seja um Lupin, disponível na Netflix, ou uma qualquer comédia que passe na sala que o Amoreiras dedica em exclusivo ao cinema francês. E, se há uns anos, a minha presença no concerto que o nonagenário Charles Aznavour deu em Lisboa fez baixar bastante a média de idade dos espectadores, não pude deixar de inscrever a minha filha Mariana na Alliance Française para garantir que continua a haver uma juventude francófona em Portugal.

E Yves Leonard? Depois de uma retrospetiva pelos quase 900 anos da história de Portugal, de D. Afonso Henriques a Salazar, passando também por Camões, garantiu-me que a imagem do nosso país em França tem mudado. Com tantos turistas e milhares de franceses a instalarem-se no nosso país, cada vez menos os portugueses são vistos pelos franceses como a concierge e o maçon, esse clichê - bem real, diga-se de passagem - da porteira e do pedreiro que Ruben Alves levou ao ecrã na sua Gaiola Dourada, mas que hoje já não corresponde às novas gerações de emigrantes ou luso-descendentes. Afinal entre eles encontramos tanto Carlos Tavares, o CEO da Stellantis, que junta Peugeot, Citroën e Fiat, como Hermano Sanches Ruivo, vereador da Câmara de Paris, ou a realizadora Cristèle Alves Meira, cujo primeiro filme, Alma Viva, se estreou em Cannes e tem acumulado prémios.

Apesar de tudo isso, Yves Leonard admite que o interesse por Portugal ainda é "marginal" e por isso decidiu escrever sobre a nossa História. E promete continuar. Aliás, quando lhe perguntei, depois de Salazar, qual o português cuja biografia gostaria de escrever, a resposta foi Joaquim Agostinho. Ora se o ciclista que morreu na sequência de uma queda no final de uma etapa da Volta ao Algarve quando um cão se lhe atravessou à frente e o fez cair da bicicleta pode parecer uma escolha pouco óbvia, talvez não seja tanto assim. Não só Yves Leonard tem pelo ciclismo, e sobretudo pelo Tour, uma paixão antiga, como Agostinho conquistou a admiração de portugueses, mas também de franceses, ao terminar duas vezes no pódio da Volta a França e ao vencer a mítica etapa do Alpe d'Huez.

Não me lembro de Joaquim Agostinho competir, tinha três anos quando ele morreu, mas lembro-me bem de o seu nome vir à baila quando anos mais tarde via com o meu pai o Tour na televisão - sim, o ciclismo também era o francês que entrava lá em casa - e como a admiração que devotava ao português não era diferente da que tinha por um Eddy Merckx ou um Bernard Hinault.

Joaquim Agostinho, um "herói esquecido" que também conquistou o francês Yves Leonard e quem sabe lhe inspire o próximo livro. Apenas um pequeno sinal de que a relação entre Portugal e França continua bem viva, mesmo se longe vão os tempos em que Mário Soares teve de publicar o seu livro Portugal Amordaçado primeiro em francês, por este ter sido proibido pelo Estado Novo. Foi agora reeditado em Portugal. Mas, 50 anos depois do 25 de Abril, é importante recordar que França deu a muitos portugueses a liberdade que não havia por cá e a muitos mais a oportunidade de trabalho e a vida melhor que não encontravam no seu país. E dizermos merci!

QOSHE - Este francês fez a biografia de Salazar e quer fazer a de Joaquim Agostinho - Helena Tecedeiro
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Este francês fez a biografia de Salazar e quer fazer a de Joaquim Agostinho

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16.12.2023

Yves Leonard apaixonou-se por Portugal há décadas, quando aos 20 anos visitou o nosso país como turista. Era o início dos Anos 1980 e mal podia o jovem francês imaginar que não só voltaria muitas vezes, como Portugal se ia tornar no tema principal do seu trabalho como historiador. Depois de o entrevistar, em 2017, a propósito de Histoire du Portugal Contemporain, de 1890 à nos Jours, voltámos a falar em 2020 a propósito do 25 de Abril. Agora foi o seu livro História da Nação Portuguesa que me levou a um frente a frente com Leonard em Lisboa, com a conversa a conduzir-nos inevitavelmente a Salazar, cuja biografia editou em outubro em Portugal, antes ainda de ser publicada em França.

Mas porquê o meu interesse? Em primeiro lugar por se tratar de um historiador, mas também por ser francês. Criada em Lausanne, na Suíça de língua francesa, cresci a ver os canais franceses, a seguir a política francesa e, claro, a ver os filmes e ouvir as canções francesas. De volta a Portugal, felizmente mantive o francês suficientemente oleado para como jornalista me tornar na "francófona de serviço" capaz de dar a Yves Leonard um descanso na série de entrevistas que já dera num excelente português. Afinal mesmo quem, como o historiador, fala a nossa língua,........

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