As eleições decorreram com total normalidade e mostraram-nos duas realidades muito claras: a maioria dos portugueses não quer que o PS continue a liderar o governo; um milhão de pessoas (uma minoria, é certo) votaram no braço português do movimento internacional de extrema-direita e, desses, um terço são jovens entre os 18 e os 34 anos.
Sobre a governação, a direita venceu as eleições e como consequência disso tem a responsabilidade de transformar os votos que conquistou em soluções para o país. O governo liderado por Luís Montenegro terá a responsabilidade de encontrar os apoios que lhe permitam governar tal como fizeram António Costa (em Portugal) ou José Manuel Bolieiro (nos Açores).

A esquerda reduziu a sua representação no parlamento ficando em minoria pelo que tem a responsabilidade de liderar a oposição e construir uma alternativa para o país. A força e a seriedade da oposição são fundamentais para a democracia. É muito importante que o PS lidere a oposição porque é fundamental que o centro político se mantenha entre o PS e o PSD. Isso será impossível se o PS fizesse acordos de governação com a AD. Dispensa-se por isso a demagogia de que se o PS não apoiar o governo então está a coligar-se com o Chega. É evidente que o PS não pode apoiar um governo da AD.

Sobre o crescimento do Chega, as teorias multiplicam-se. Ainda que existam particularidades locais, esse crescimento não pode ser lido sem uma contextualização internacional. O Chega fez uso de todas as estratégias típicas da extrema-direita: criou ruído, fez-se muito presente nas redes sociais, prometeu uma coisa e o seu contrário, capturou descontentamentos diversos e incorporou o voto nacionalista, supremacista racial e religioso radical através do ataque às pessoas mais vulneráveis da sociedade. Não surpreendentemente conseguiu arrancar votos entre os mais vulneráveis também. Também sem surpresas somou a sua presença massiva e bem-sucedida nas redes sociais à atenção desproporcional que lhe foi garantida pelos orgãos de comunicação tradicionais.

Convém que não nos iludamos: há ali voto de protesto de pessoas legitimamente desiludidas; e há voto iludido por uma percepção mais negativa do país que existe; e há voto de pessoas que estão foram do sistema no sentido de não compreenderem nem se importarem com o regime; mas também há muito voto racista, homofóbico, xenófobo e machista que se sentiu finalmente representado.
E também convém que não menorizemos esse voto. Infelizmente há entre nós algumas pessoas - muitas pessoas, diria - que têm saudades do antigo regime, que querem impor uma visão conservadora da sociedade aos outros, que querem limitar os direitos cívicos das mulheres, que querem aumentar a arbitrariedade das forças policiais, que defendem a diminuição das garantias do sistema judicial, que acreditam na supremacia dos portugueses brancos em relação aos demais ou que querem destruir o Estado para prevalecer a lei da selva. Durante muito tempo prevaleceu nas sociedades ocidentais uma visão comum dos problemas. Víamos os mesmos programas, líamos os mesmos jornais e recebíamos a mesma informação acerca do mundo. Numa primeira fase, o mercado foi-se especializando e criando a ilusão de que cada um poderia ter um produto à sua medida. O mundo dos que liam o Correio da Manhã parecia muito diferente do mundo dos que liam o Público. Tal como o mundo dos que viam o Big Brother era diferente do mundo dos que viam a telenovela da SIC. Mas nesse tempo ainda existiam muitos pontos de contacto.

A internet, as redes sociais e o streaming mudaram tudo tão rápido que não foi possível antecipar as suas consequências. Sob a capa de uma suposta personalização que nos faz sentir especiais mas não passa de uma forma de valorizar o produto e, ao mesmo tempo, incentivar o consumo, hoje podemos escolher tudo. Isso faz com que as séries que eu vejo me mostrem um mundo inclusivo, moderno e progressista enquanto que as séries que o streaming sugere ao meu vizinho lhe mostram a violência envolta nos benefícios do machismo e da exclusão. Nas redes sociais acontece mais ou menos o mesmo: o que o TikTok ou o Instagram mostra a uns não é o mesmo que mostra a outros. Não há pontos de contacto entre estes dois mundos. Não vemos a mesma realidade e acreditamos que a realidade paralela que vemos é a que existe.

As democracias, contudo, vivem capturadas pelas dificuldades que a realidade lhes impõe e onde se cruzam vivências muitos diferentes e com pontos de contacto cada vez mais estreitos Durante muitos anos, os partidos do centro conseguiram alimentar a ilusão da esmagadora maioria das pessoas de uma forma pragmática. Mas num mundo onde tudo foi extensamente mercantilizado, incluindo a informação e a comunicação, o individualismo parece estar a capturar essa ilusão através da ideia de que podemos “customizar” tudo como fazemos no mundo virtual.

Não vale a pena minimizar o fenómeno: as últimas eleições na Europa, nos Estados Unidos e no Brasil mostram que há um número inusitado de pessoas que deixou de acreditar no regime democrático e pensam que existe uma alternativa melhor. Estão errados e iludidos pela ideia de que outro regime lhes pode oferecer o exato mundo que cada um deles aspira.
Por muitos problemas que tenha, a democracia liberal é o único regime que nos permite construir um futuro com todos e para todos. Não precisamos de experimentar as trevas para encontrar os caminhos que nos permitirão encontrar soluções democráticas. É tempo de procurar quem votou para destruir e devolver a esperança de construir.

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“Eleições: entre a ilusão e a...”

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18.03.2024

As eleições decorreram com total normalidade e mostraram-nos duas realidades muito claras: a maioria dos portugueses não quer que o PS continue a liderar o governo; um milhão de pessoas (uma minoria, é certo) votaram no braço português do movimento internacional de extrema-direita e, desses, um terço são jovens entre os 18 e os 34 anos.
Sobre a governação, a direita venceu as eleições e como consequência disso tem a responsabilidade de transformar os votos que conquistou em soluções para o país. O governo liderado por Luís Montenegro terá a responsabilidade de encontrar os apoios que lhe permitam governar tal como fizeram António Costa (em Portugal) ou José Manuel Bolieiro (nos Açores).

A esquerda reduziu a sua representação no parlamento ficando em minoria pelo que tem a responsabilidade de liderar a oposição e construir uma alternativa para o país. A força e a seriedade da oposição são fundamentais para a democracia. É muito importante que o PS lidere a oposição porque é fundamental que o centro político se mantenha entre o PS e o PSD. Isso será impossível se o PS fizesse acordos de governação com a AD. Dispensa-se por isso a demagogia de que se o PS não apoiar o governo então está a coligar-se com o Chega. É evidente que o PS não pode apoiar um governo da AD.

Sobre o crescimento do Chega, as teorias multiplicam-se. Ainda que existam particularidades locais, esse crescimento não pode ser lido sem uma contextualização........

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