A extrema direita populista tem dominado o debate político no mundo a que chamamos ocidental. E tem protagonizado um assinalável retrocesso político, económico e social nos países onde chega ao poder. Apesar disso, a sua popularidade está em níveis inimagináveis há uma década.
A malvadez, a incoerência e o disparate das suas propostas captam a atenção permanente dos meios de comunicação social tradicionais controlando a agenda mediática. Uma legião de influenciadores digitais, invariavelmente composta por homens brancos e heterossexuais insatisfeitos com as suas próprias vidas sócio-afetivas, sustenta-se com o contágio da sua raiva e da sua revolta.
Os comentadores multiplicam-se em explicações para o fenómeno: os imigrantes, os especuladores imobiliários, os políticos pouco sérios, a política que deixou de responder às insatisfações concretas das pessoas, a falta de resposta dos serviços públicos, a falta de perspectivas de futuro e tudo e mais alguma coisa serve de justificação para esta evidente dissonância cognitiva com que nos confrontamos.

Como é possível que pessoas que cresceram em liberdade admitam aderir a movimentos que defendem o autoritarismo? Como é possível que pessoas que cresceram com apoios sociais defendam a sua extinção para os demais? Como é possível que pessoas que estudaram em universidades públicas com propinas de baixo custo ou bolsas de estudo defendam o pagamento dos estudos pelos mais jovens? Como é possível que filhos de mães vítimas das piores discriminações adiram às narrativas machistas? Como é possível que jovens que cresceram vacinados e com acesso a cuidados de saúde gratuitos defendam o seu pagamento pelos outros? Como é possível?
Encontrei por estes dias o meu amigo José Pedro Monteiro, um dos mais conceituados historiadores da nova geração. Falámos sobre os efeitos nefastos que o aborrecimento da sociedade do conforto pode ter. E pôs-me a refletir sobre isso mesmo.

Vivemos há cinco décadas sem guerras e com melhorias assinaláveis, sustentadas e progressivas no sistema de ensino (em 1974 erámos um dos países com menos escolaridade do mundo ocidental), no sistema de saúde (o nosso SNS, que nos fazem acreditar ser péssimo, tem melhores indicadores que qualquer outro sector do país), nos direitos, liberdades e garantias, no combate à pobreza e na redução das desigualdades. Os indicadores económicos colocam Portugal como um dos países que mais cresce na Europa. A dívida, que tantos problemas nos deu no passado, está controlada. O salário mínimo aumentou de forma expressiva – sem correspondência direta, é certo, nos demais salários – contribuindo para retirar muitas famílias da pobreza.

Os meus avós maternos eram agricultores em Trás-os-Montes. Não estudaram. Acordavam às 5 da manhã para os trabalhos agrícolas sem ajuda de qualquer máquina. Não podiam participar na vida política do país. Viviam do que a terra produzia, quando a terra produzia. Morreram cedo, vítimas de doenças hoje preveníveis, sem nunca terem chegado a ver o mar. A geração dos meus pais experienciou essa vida dura, agreste, e testemunharam a extraordinária transformação da sociedade que construímos.
A minha geração e os que são mais novos não tiveram essa experiência. Nascemos e crescemos com um conforto que não encontra paralelo em momento algum da História. Afirmar esta evidência não significa que não tenhamos um longo caminho a percorrer no combate às desigualdades e que não existam ainda demasiadas pessoas que vivem em condições que nos envergonham. Mas é muito claro que muitos dos que aderem às narrativas que procuram limitar a democracia liberal ou destruir o estado social não estão, de facto, nessas condições difíceis.

De onde vem então tanta insatisfação dos que vivem melhor que nunca? Muitas vezes a insatisfação gera-se do aborrecimento do conforto, da ilusão das vidas imaginadas no Instagram e das distorções que se alimentam da falta de perspetiva (mas não necessariamente da falta de uma perspetiva). A História já nos mostrou que o ser humano é capaz das melhores e das piores decisões. Vivemos um momento decisivo nas nossas vidas. Que sejamos capazes de voltar a encontrar encanto na paz, na tranquilidade e no progresso desta sociedade do conforto em que vivemos. O populismo de extrema-direita é capaz de não nos parecer tão entediante mas é, garantidamente, a pior solução.

Últimas Ideias

11 Fevereiro 2024

O que é que os jovens veem no Chega?

11 Fevereiro 2024

A cidade densa

Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos.

QOSHE - “A era do tédio” - Pedro Morgado
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

“A era do tédio”

7 0
12.02.2024

A extrema direita populista tem dominado o debate político no mundo a que chamamos ocidental. E tem protagonizado um assinalável retrocesso político, económico e social nos países onde chega ao poder. Apesar disso, a sua popularidade está em níveis inimagináveis há uma década.
A malvadez, a incoerência e o disparate das suas propostas captam a atenção permanente dos meios de comunicação social tradicionais controlando a agenda mediática. Uma legião de influenciadores digitais, invariavelmente composta por homens brancos e heterossexuais insatisfeitos com as suas próprias vidas sócio-afetivas, sustenta-se com o contágio da sua raiva e da sua revolta.
Os comentadores multiplicam-se em explicações para o fenómeno: os imigrantes, os especuladores imobiliários, os políticos pouco sérios, a política que deixou de responder às insatisfações concretas das pessoas, a falta de resposta dos serviços públicos, a falta de perspectivas de futuro e tudo e mais alguma coisa serve de justificação para esta evidente dissonância cognitiva com que nos confrontamos.

Como é possível que pessoas que cresceram em liberdade admitam aderir a movimentos que........

© Correio do Minho


Get it on Google Play