A luta pela verdade (2)
Regressemos a Hannah Arendt. Contra a “tirania da verdade” de Platão, Arendt convoca Sócrates para recuperar o conceito de doxa, agora entendido como “dokei moi”: o que me parece ou do que me aparece. É a ideia que Aristóteles subscreve, de acordo com Arendt:
“O pressuposto era que o mundo se abre de modo diferente para cada homem segundo a sua posição nele, e que a ‘mesmidade’ do mundo, a sua qualidade comum ou ‘objetividade’, reside no facto de que o mesmo mundo se abre a todos e de que a despeito de todas as diferenças entre os homens e entre as suas posições no mundo – e, por consequência, entre as suas doxai (opiniões) – ‘tu e eu, ambos somos humanos’.”
É por esta razão que Aristóteles nos parece mais próximo do espírito democrático, mesmo que nunca tivesse feito a sua defesa. Ele oferece um Sócrates diferente do de Platão, e que Arendt recupera: como o mundo nos aparece sempre de forma diferente, não podemos ambicionar fugir dessa pluralidade. Estamos condenados a viver num mundo que é experienciado de modo diferente por cada indivíduo e que, por isso, é inevitavelmente plural, confuso, ambíguo e, até, conflituoso.
É possível que nenhum texto represente tão bem esta relação entre mesmidade e pluralidade como os quatro Evangelhos. Quatro textos que se debruçam sobre o mesmo objeto – a vida de Jesus – mas fazendo-o com discrepâncias incompatíveis… precisamente porque são quatro, e não um. Contudo, se o mundo é o mesmo, se o objeto é o mesmo, se a história é a mesma, não fragilizam essas contradições a mensagem dos evangelistas?
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Frederico Lourenço inverte a questão: “as características discrepantes e contraditórias funcionam como garantia de autenticidade”, uma vez que teria........
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