2020-30: Três apontamentos sobre uma época
Que mundo é este onde vivemos é uma questão que, mesmo assaltando a mente humana desde o início dos tempos, se vê hoje largamente esquecida pelo “homem comum” e delegada no “cientista” que, junto com as suas máquinas ultra-tecnológicas, balões de ensaio de exigente alquimia laboratorial ou, ainda, os triliões de investimento em gigantescas experiências subatómicas, se dedica a respondê-la. Assim, na modernidade, no que concerne a resposta àquela primordial questão que orientou a vida e curiosidade humanas durante milénios, os homens dividiram-se grosso modo em dois: aqueles que tratam de estudar o assunto, peritos especializados em científico conhecimento, e todos os outros que delegam nos primeiros a tarefa de encontrar as respostas que, mais tarde, convenientemente, lhes transmitirão aquele chão de segurança que nos diz que afinal até sabemos bem de onde vimos, onde estamos, o que somos e para onde vamos — uma espécie de outsourcing moderno de reflexão existencial.
Sem aquele chão, como Isaiah Berlin relembrava já em 1950 ao descrever as grandes tendências do pensamento político do Século XX, sobraria apenas um terror existencial derivado do vazio que, desconhecido, negro, mortífero e inevitável, ameaça engolir-nos ao virar de cada esquina. Antes, claro, tínhamos o Paraíso prometido pela teologia Cristã; mas agora, uma vez desacreditado esse, sobrou apenas a necessidade de o substituir por uma outra promessa. Dado o espírito científico da época onde a bata branca do cientista já há muito rendeu a autoridade da batina preta do padre foi, portanto, a ciência chamada a encarnar a nova deusa salvadora da Humanidade. Daí, que tal como o povo esperando Moisés no sopé da montanha, na ausência do seu líder, exigira a Aarão “ídolos que lhes permitissem ter deuses que os guiassem”, também agora se erigiu um novel bezerro de ouro. Este, igualmente brilhante através de todos os brinquedos e traquitanas tecnológicas que nos inundaram a vida, não deixa de ser, no entanto, como lembrou Lev Shestov a propósito de Kant e da sua moral racional pura, um “falso ídolo moral” que procura apenas preencher o terrífico vácuo deixado pela ausência de Deus. A este propósito, Nietzsche, pela boca de um louco, quando lamentando o homicídio divino às mãos dos homens indagava-se angustiado: “quem nos limpará deste sangue? Qual a água que nos lavará?… A grandiosidade deste acto não será demasiado para nós?” A resposta apareceu, afinal, como positiva: era demasiado peso para tão frágeis ombros humanos aguentarem, daí que Deus morto, deus posto e, perante tal abismo de súbita solidão existencial, paulatinamente se erigiu o novo culto em nome da crença na salvação científica, não apenas da Humanidade, atente-se, mas, seja pela promessa farmacológica de morte eternamente adiada, seja pelos anseios de upload neuro-digital, eventualmente também de cada um de nós.
Tanto assim foi que, rapidamente, se propagou o bezerro científico de ouro — deus postiço, é verdade, mas pseudo-divino não obstante. No entanto, precisamente porque é falso, tudo o falso ídolo agora corrompe, incluindo a própria divindade na qual se baseia. A ciência, mãe de todos os exercícios de dúvida, estruturada pelos métodos da inquirição, do cepticismo e da experimentação anti-dogmática, quando tornada a nova deusa que promete salvar o Homem, precisamente porque o deus que nela se evoca como qualquer deus que se preze não pode ser outra coisa além de uma rocha de infalibilidade que apanigue o terror do desconhecimento existencial, foi pois agora pervertida no seu exacto oposto — uma apologia da certeza, baseada na revelação inquestionável, na crendice e consequente aceitação acéfala de um novo dogma assente em alargados “consensos” com os quais todos parecem concordar. Quanto ao consenso em si mesmo, assuma-se, nada de novo há aqui, sempre a ciência se fez de opiniões majoritárias ou, para utilizar jargão mais apropriado, de “paradigmas” por vezes difíceis de questionar. A novidade não reside, portanto, na forma como a ciência se processa, mas nas consequências que ela aporta: tornada divindade, logo as suas conclusões, em particular as tais consensuais, mesmo que abundantemente financiadas por interesses obscuros, truncadas por vontades particulares, ou claramente exageradas por conveniência política, todas elas tomam agora a forma de decreto divino, infalível, definitivo, do qual não se pode, nem deve, discordar. Deste modo, para todos os efeitos práticos, passa aquilo que é tido como científico a ser entendido como verdadeiro e bom, logo consistindo de facto em nova fonte de boa moral, inspiração de ainda melhores costumes, comportamentos e, a seu tempo, “pensamentos, actos e omissões”.
Depois, porque a crença no novo culto apenas existe para acomodar e esconder o terror que o inconsciente vazio existencial desperta na mente de quem mais nada tem em que acreditar, quem em ousada apostasia coloque em causa o culto torna-se então uma perigosa ameaça merecedora das maiores sevícias, terríveis epítetos e garantia de........
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