Uma topografia do além: a Commedia, em tempo de Natal
Na infância, muitas vezes a viragem para a leitura é acordada pela imagem: queremos decifrar, entender, gravuras, representações, pinturas que captam a nossa atenção, que nos intrigam, que nos obrigam a parar e a ficar ali, fascinados, suspensos, com a curiosidade a roer-nos. Foi assim que, não sei com que idade, mas ainda miúdo, acabei por ler O Inferno numa edição da Comédia, crismada Divina Comédia por Bocaccio, ilustrada por Gustave Doré. Uma das mais detalhadas viagens pelo Além que conheço.
E começa pelo Inferno. Dante situou o início da sua viagem ao outro mundo no dia 25 de Março de 1300, início do Jubileu ou Ano Santo de Bonifácio VIII, jubileu que causara grande confusão em Roma, então uma cidade de 80.000 habitantes, invadida por 200.000 peregrinos e mergulhada num caos quase apocalíptico.
Dante estava metido na política do tempo, alinhando com os chamados Guelfos Brancos. Na bipolarização medieval entre partidários do Imperador e do Papa (uma deriva polémica da “doação de Constantino” que resultou num conflito velho que se agudizara no tempo de Frederico II de Hohenstaufen e dos papas seus inimigos a partir da questão da primazia dos dois poderes), os Guelfos Brancos eram os partidários moderados do Papa. Mas havia os Guelfos Negros, os partidários radicais do Papa e que, numa boa antecipação das políticas e cisões ideológicas do nosso tempo, abominavam com maior fervor os seus correligionários Brancos do que os seus inimigos Gibelinos, partidários do Imperador. O Papa reinante em Roma era Benedetto Caetani, papa Bonifácio VIII, que fora eleito no dia de Natal de 1294.
Dante, guelfo branco, sofrera as consequências dessa inimizade quando os Guelfos Negros tomaram o poder em Florença; dois séculos depois, outro florentino ilustre, Maquiavel, passará por idêntica sorte, depois do regresso dos Médici ao governo da Cidade-Estado. E na reforma antecipada poderá escrever grandes obras de antropologia e filosofia política, das quais a mais famosa ficou a ser Il Principe, um manual Ad Delphini, escrito na esperança frustrada de recuperar as graças dos Médici.
Mas Maquiavel, depois de um curto mau bocado, pôde ficar em Florença. Dante, não. Foi mais uma desgraça na sua vida. Tivera uma paixão por Beatrice Portinari, que vira pela primeira vez aos nove anos. Aos quinze anos Beatrice casou-se com Simone de Bardi, e ele, aos vinte, com Gemma Donati. Amores infelizes, que o marcaram para sempre e que sublimou em poesia.
Neste tempo, em Florença, tal como na China dos Mandarins e na Roma dos Césares, para aceder a cargos políticos era preciso demonstrar e provar uma certa cultura histórica e literária. Outros tempos, outras terras, outras gentes.
Voltando a Dante e ao princípio da sua tragédia política. Quando Florença, sua pátria, passou a estar sob o jugo dos Guelfos Negros, o poeta foi forçado ao exílio. Bonifácio mandara que Charles de Valois marchasse sobre a cidade e a reconquistasse aos Guelfos Brancos. E. com o Valois. veio, em Novembro de 1301, Corso Donati, um guelfo negro que se encarregou da purga, do saque e das decorrentes exclusões e macro-atentados aos direitos humanos (que os tempos não estavam para simples faltas de inclusão ou meras declarações micro-agressivas).
Dante estava em Roma, em missão diplomática, quando soube da sua condenação por corrupção, nos finais de 1302. Uma condenação sob falsas acusações que o obrigava a pagar uma multa que não podia pagar, pois já os bens herdados tinham sido objecto de confisco.
Na amargura do exílio, comeu o “pão alheio” e andou pelas “escadas alheias” de Verona, Bolonha, Ravena. Tinha então 36 anos e nunca mais voltou a ver nem a sua cidade nem a sua família, a mulher, Gemma, e os quatro filhos.
O poeta da Vita Nuova escreveu então a Commedia, onde também se vingou dos seus........





















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