Relutei bastante antes de escrever a coluna de hoje porque o assunto “bicho” provoca alegrias e tristezas profundas. Já tive muitos e perdi outros tantos – alguns, naturalmente, por velhice; outros, doentes sem cura, pela dolorosa opção da eutanásia. Vi o depoimento do dono do Joca – figura humana que os censores da novilíngua resolveram denominar “tutor” em mais uma tolice desses ativistas do supérfluo. Devem achar o termo “dono” ofensivo, opressor, zoofóbico, fascista, sei lá. A dor do rapaz merece toda a solidariedade; só quem perde um amigão de quatro patas pode medir tal sofrimento.

Infelizmente, não foi o primeiro caso no mundo. Se o fato ocorresse em um país decente, a questão seria resolvida burocrática e privadamente por meio da Justiça – desde que também decente, e não esse modelo ilógico, parcial e amedrontador, que prende velhinhas com Bíblias e solta traficantes e condenados. A triste notícia duraria um dia; o dono (“tutor”, não) do animal receberia indenização e desculpas da companhia aérea.

No entanto, a exploração do assunto pela mídia ultrapassou os limites do exagero e do ridículo – velha tática da imprensa ao supervalorizar dramas particulares e, assim, desviar a atenção da baderna coletiva. O caso virou uma brecha para oportunismos e babaquices oficiais. O atual ocupante do Alvorada exibiu uma gravata cheia de cachorrinhos em homenagem ao pobre animal. Gravata? Ato falho? Dias atrás, Elon Musk insinuou ser o mesmo senhor tutorado – agora, sim, vale o verbo “tutorar” – por um magistrado, usando no pescoço o acessório canino. Já a esposa protagonizou pieguices ao lado de um desses desconhecidos ministros de qualquer coisa, trazido à força, decorando o script e prometendo providências contra a empresa aérea. Só faltou encerrar a pantomima lançando o programa “Voar & Latir”, voos com acomodações de primeira classe e filmes do Rin-Tin-Tin para bichos e donos.

Nas redes, os brasileiros reagiram ao exagero dramático com ironias certeiras. No quesito “morte”, choveram alusões à epidemia descontrolada da dengue, que já matou até agora quase 2.000 cidadãos e cuja vacinação patina. Citaram o crescimento exponencial das mortes de Yanomami, a economia despencando e outros fracassos da atual gestão. No quesito “violência”, lembraram os assassinatos diários promovidos por jovens marginais – só para tomar uma cervejinha, pô. E cobraram manifestação da referida senhora contra seu enteado – mais um homem espancando a companheira e poupado pela grande mídia – esta, tutorada e presa na coleira.

O caso Joca fez-me lembrar um incidente ocorrido numa capital nordestina e de desfecho inusitado. Um voo atrasadíssimo chegou de madrugada. Ao conferir a papelada, o pessoal de terra descobriu que a carga incluía uma gaiola com cachorro. E, ao abrirem o compartimento, lá estava um dálmata... morto. Arre égua! Que problema! Na maior cara de pau, um dos presentes sugeriu:

– Conheço uma dona que cria cachorros dessa raça... E se a gente...?

Procuraram a criadora logo ao amanhecer. Do canil trouxeram um filhote semelhante ao falecido em porte e pintas. Pouco depois, chegou o destinatário da encomenda e, com ele, se dirigiram ao setor de cargas. O homem bateu o olho no dálmata 0 km e balançou a cabeça, intrigado. Xi! Teria, logo de cara, descoberto o embuste?

– Deve haver um engano, pessoal. Na verdade, eu vim buscar um cachorro... morto.

Ele era veterinário, profissional respeitadíssimo naquela região. Um colega de outra cidade, insatisfeito com um diagnóstico duvidoso, mandara por via aérea o cadáver para uma autópsia mais confiável.

– Ok, doutor, o morto está ali, atrás do hangar. E devolvam este aí pra mulher do canil, já!

Contei aqui como me contaram lá. Acredite quem quiser.

QOSHE - Triste, mas... - Fernando Fabbrini
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Triste, mas...

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02.05.2024

Relutei bastante antes de escrever a coluna de hoje porque o assunto “bicho” provoca alegrias e tristezas profundas. Já tive muitos e perdi outros tantos – alguns, naturalmente, por velhice; outros, doentes sem cura, pela dolorosa opção da eutanásia. Vi o depoimento do dono do Joca – figura humana que os censores da novilíngua resolveram denominar “tutor” em mais uma tolice desses ativistas do supérfluo. Devem achar o termo “dono” ofensivo, opressor, zoofóbico, fascista, sei lá. A dor do rapaz merece toda a solidariedade; só quem perde um amigão de quatro patas pode medir tal sofrimento.

Infelizmente, não foi o primeiro caso no mundo. Se o fato ocorresse em um país decente, a questão seria resolvida burocrática e privadamente por meio da Justiça – desde que também decente, e não esse modelo ilógico, parcial e amedrontador, que prende velhinhas com Bíblias e solta traficantes e condenados. A triste notícia duraria um dia; o........

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