Em Portugal, há dois debates antigos, com declinações temporais e formais mais ou menos sérias, sobre a Europa: o primeiro, é o de saber se queremos “mais Europa connosco”, como Soares reclamou, ou “mais Portugal com a Europa”, como Lucas Pires replicou; o segundo, é o de saber se queremos uma Europa federal ou uma Europa de nações.

A declinação do primeiro debate, caricatural, é a que divide os que olham para a Europa como um pipeline de dinheiro e os que olham para a Europa como um espaço comum em construção, em que Portugal, assumindo um papel pleno e responsável, se pergunta que mais-valia pode levar ao processo europeu, designadamente reforçando a vertente atlântica. Os primeiros, mais numerosos, expressaram-se de formas diferentes ao longo do tempo: desde os dos JEEPs para os “jovens agricultores” do Quadro Comunitário de Apoio I aos da “bazuca financeira”, até aos da patusca obsessão de pôr um português em lugar de destaque “lá na Europa”. Os segundos procuraram, ao longo dos anos, coisas como aprofundar as relações da União Europeia com os países da lusofonia, por exemplo, ou, à boleia das regras europeias, aumentar o grau de exigência, rigor e transparência do desempenho dos governos nacionais, com o propósito de nos tornarmos mais contribuintes do que beneficiários. Têm sido, claro, em menor número.

A declinação do segundo é o de saber se a Europa é um projecto – coisa que implica um princípio, um meio e um fim – federalista, que culminaria com um Governo federal, ou se é um processo – algo em permanente construção nunca acabado, onde os Estados membros nunca seriam subalternizados por um Estado federal. Este debate é importante, sobretudo depois do Brexit e ante outras ameaças do mesmo tipo, onde os argumentos contra um poder central europeu ganharam expressão mais sonora; mas eu diria que é sobremaneira importante quando dentro dos Estados membros fervilham ímpetos separatistas, pondo em causa a existência de alguns desses mesmos Estados, como aqui ao lado em Espanha, só para dar exemplo próximo e fervilhante.

Certo é que a Europa está sob ameaças diversas, a maior parte delas resultantes de dependências por si criadas ou, no cenário mais benevolente, por si não contrariadas. Destacaria cinco: a dependência energética, industrial, tecnológica, demográfica e de defesa.

Sobre a primeira, a energética, que ganhou especial relevância aquando da invasão da Rússia à Ucrânia, a Europa tinha, em 2020, uma dependência energética de 58%, e não melhorou. Desses 58%, à data, o principal fornecedor era precisamente a Rússia (29% do petróleo, 43% do gás e 54% do carvão). Curiosas as críticas que prontamente se lançaram sobre Angela Merkel: “como é que isto foi possível?”, perguntaram os indignados. Na altura, escrevi aqui um artigo onde tentei explicar por que razão as críticas me pareciam injustas, ou pelo menos injustificadas por inconsequência. A consequência em falta, desde logo, prendia-se com a aparente placidez face à segunda dependência: a industrial.

Entre 2009 e 2019, como também escrevi aqui, a União Europeia permitiu que a China ultrapassasse os Estados Unidos como seu principal fornecedor. Não se tratam, estes dados, só por si, de uma evidência de dependência industrial. Porém, estes dados, conjugados com os objectivos de transição energética e combate às alterações climáticas que a UE se impôs e que a China, por exemplo, não cumpre, faz com que, para dar só um exemplo, na indústria automóvel, a pressão para abandono dos motores a combustão na UE, em que é especialista, para os trocar por motores eléctricos, onde a China é mais competitiva, coloca a UE, uma vez mais, perante uma concorrência exímia no dumping. Primeiro, enfrentou o dumping social e laboral, agora enfrenta o dumping ambiental. Sempre por bons motivos, porém sempre com prejuízo económico.

Se a dependência industrial evidencia perda de competitividade na economia tradicional, a terceira dependência, a tecnológica, evidencia perda de competitividade na nova economia. A UE tem menos patentes do que os Estados Unidos e a China e tem menos empresas tecnológicas em todos os rankings da nova economia. Este défice de inovação na economia não é um problema apenas do presente, é um problema de futuro.

Estas três primeiras dependências são um tridente apontado à jugular económica da União Europeia. Ou um Cérbero asfixiando a sustentabilidade económica. Se a União Europeia perde competitividade e relevância à escala global e diminui a sua capacidade de produzir riqueza, como é que espera continuar a financiar o Modelo Social Europeu?

E, nesta sequência, e por falar em sustentabilidade, temos a quarta dependência: a dependência demográfica. A velha Europa está velha. Não é uma redundância. À antiguidade histórica, a Europa somou velhice etária. Carente de mão-de-obra externa, e com um modelo social sedutor, a Europa tornou-se porto de destino de todas as migrações desesperadas. Sem uma política de escolha no destino, apenas entregue a uma força aspiracional na origem, o saldo migratório na Europa será o que os que a procuram quiserem e não o que a Europa quiser. E precisar. O que nos leva a um outro problema, de natureza cultural, merecedor de reflexão mais longa e dedicada, mas que configura, como se pode ver já em certas cidades europeias, um barril de pólvora pronto a explodir.

Finalmente, a quinta dependência: a defesa. Sem uma política de defesa comum, ou próxima disso – só a disparidade de modelos de equipamentos militares europeus existentes e as implicações de ineficácia e ineficiência que tal suscita bastaria para o afirmar –, a defesa dos países da União Europeia está praticamente entregue, graças à pertença à NATO, aos Estados Unidos; com quem nem os compromissos mais elementares (2% do PIB afectos à Defesa) a maior parte dos países cumpre. Sobre isto, havendo dúvidas, a guerra na Ucrânia tornou evidente, e a longa lista de reclamações de Presidentes norte-americanos – não foi só Trump – tornou preocupante.

O título deste artigo, é fácil de ver, inspira-se na célebre rábula dos Monty Python, no filme A Vida de Brian: “O que é que os Romanos fizeram por nós?” Opositores clandestinos ao Império Romano começam, na cena, a elencar, em catadupa e a cada repetição da pergunta pelo líder, o que Roma tinha feito naquele lugar remoto do Império, onde Brian (e Jesus) tinha nascido: distribuição de água, saneamento, redes viárias, saúde, educação, ordem pública. Visivelmente aborrecido, o líder, no final, insiste: “Ok, ok, para lá da distribuição de água, do saneamento, das redes viárias, da saúde, da educação e da ordem pública, o que é que os Romanos fizeram por nós?” “A paz!”, responde ainda alguém. O líder, já exasperado, despreza: “Oh, a paz…”

Lições importantes a tirar: em abundância, o que recebemos é quase sempre pouco valorizado; e, em tempo de paz e sem memória recente das agruras da guerra, a menção à paz como valor é pouco mobilizador.

Hoje, porém, a União Europeia já não vive em abundância e tem uma guerra à porta. Nas próximas eleições europeias discutir-se-ão coisas seguramente importantes como o alargamento da União, a redistribuição dos fundos estruturais para novos destinos, o fim do equilíbrio tradicional e hegemónico entre democratas-cristãos e sociais democratas, as exigências e consequências do green deal, questões relacionadas com a distribuição de poder nas instituições comunitárias, e outras. Todavia, parte destas questões são consequência de, e outra parte inconclusivas sem um debate sério sobre, as dependências que elenquei.

É por isto que talvez seja tempo de rever, no presente e para o futuro, os dois debates sempiternos que referi no início deste artigo. E, de caminho, talvez seja tempo de reformular a questão do título, perguntando não O que é que a Europa fez por nós?, mas antes O que é que nós podemos fazer pela Europa? e, até, O que é que a Europa deve fazer por si?

Pedro Gomes Sanches escreve de acordo com a antiga ortografia

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O que é que a Europa fez por nós?

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06.05.2024

Em Portugal, há dois debates antigos, com declinações temporais e formais mais ou menos sérias, sobre a Europa: o primeiro, é o de saber se queremos “mais Europa connosco”, como Soares reclamou, ou “mais Portugal com a Europa”, como Lucas Pires replicou; o segundo, é o de saber se queremos uma Europa federal ou uma Europa de nações.

A declinação do primeiro debate, caricatural, é a que divide os que olham para a Europa como um pipeline de dinheiro e os que olham para a Europa como um espaço comum em construção, em que Portugal, assumindo um papel pleno e responsável, se pergunta que mais-valia pode levar ao processo europeu, designadamente reforçando a vertente atlântica. Os primeiros, mais numerosos, expressaram-se de formas diferentes ao longo do tempo: desde os dos JEEPs para os “jovens agricultores” do Quadro Comunitário de Apoio I aos da “bazuca financeira”, até aos da patusca obsessão de pôr um português em lugar de destaque “lá na Europa”. Os segundos procuraram, ao longo dos anos, coisas como aprofundar as relações da União Europeia com os países da lusofonia, por exemplo, ou, à boleia das regras europeias, aumentar o grau de exigência, rigor e transparência do desempenho dos governos nacionais, com o propósito de nos tornarmos mais contribuintes do que beneficiários. Têm sido, claro, em menor número.

A declinação do segundo é o de saber se a Europa é um projecto – coisa que implica um princípio, um meio e um fim – federalista, que culminaria com um Governo federal, ou se é um processo – algo em permanente construção nunca acabado, onde os Estados membros nunca seriam subalternizados por um Estado federal. Este debate é importante, sobretudo depois do Brexit e ante outras ameaças do mesmo tipo, onde os argumentos contra um poder central europeu ganharam expressão mais sonora; mas eu diria que é sobremaneira importante quando dentro dos Estados membros fervilham ímpetos separatistas, pondo em causa a existência de alguns desses mesmos Estados, como aqui ao lado em Espanha, só para dar........

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