Muitos dos abstencionistas que votaram domingo no Chega eram-no há vinte anos ou mais. Grande parte da raiz desse partido advém de dois lugares para os quais se olha menos nos media:

1) O de um movimento populista, extremado na Europa que surge solidificado num grande e concertado bloco em que uns ou outros se financiam e apoiam. André Ventura não é uma personagem menor neste enquadramento. Líder hábil, tem o apoio e está bem alavancado por todas as personagens relevantes globalmente aqui.

2) O outro lugar que vai ao encontro dos tais antigos abstencionistas portugueses que referenciei no início do artigo é o dos saudosistas do antigo regime, sem qualquer apego à democracia por melhores ou piores soluções que esta lhes dê. Durante anos, estiveram à margem do debate político exatamente por isso e naturalmente que não se trata de um fenómeno exclusivamente português. Pelo contrário. Por essa Europa, existem ligações históricas ao fascismo, com mais ou menos narrativas falsas marteladas hoje e através de todos os mecanismos subvertidos numa nova extrema-direita muito bem financiada. É por isso normal o porto seguro em personalidades históricas como Salazar. Passa de geração em geração e cria-se uma espécie de nostalgia de um país que só existiu para a realidade deles.

André Ventura sabe que a raiz do Chega é aí e também por isso, nunca foge muito dela.

Estes saudosistas do salazarismo valem os seus 10% no partido e hoje como ontem, vivem através das bandeiras da luta contra a corrupção, da podridão da política e por cá, têm apoios de peso mais ou menos camuflados como o herdeiro da Jerónimo Martins que ainda recentemente surgiu com a mesma cassete ignorante e riscada contra tudo o que é político e no julgamento do trabalho executivo destes. Santa ignorância de quem nada sabe a não ser do mundo que lhe foi herdado e que nem o mínimo do give back da escola americana tem. Se o tivesse, perceberia que o mínimo era pagar impostos em Portugal. Como dizia um grande empresário português recentemente e de forma corajosa: as nossas fracas elites financeiras e económicas muitas vezes falham bastante mais do que as políticas. Lessem mais livros!

Claro que há população descontente e não é pouca. Com razão de o ser e é preciso saber ir ao encontro de todas as pessoas, melhorando as suas vidas. Mas a ilusão ou os ossos do ofício dessa crença como parece existir tanto na cabeça de um político como Carlos Moedas ou de outro como Pedro Nuno Santos, na qual a melhor governação no espaço democrático acabará com todo este fenómeno e até com o crescimento da extrema-direita nalguns aspetos, é pura ignorância e ausência de mundividência. Bastaria olharem para alguns dos países mais bem governados, onde existe menor desigualdade, mais crescimento económico e a forma igual ou parecida como cresce o fenómeno através do ódio, narrativas falsas e do revisionismo histórico.

Não, a extrema-direita é em grande parte uma realidade que tem de ser combatida e desmantelada na sua raiz. Isso passa por expor e denunciar tanto as fontes do seu financiamento, a sua infiltração nalguns setores determinantes e criar legislação digital que permita combater a sua penetração através de todo um chorrilho de informação falsa nesse espaço. Apoiar o jornalismo factual e democrático.

Não se quis debater e perceber durante esta campanha o porquê de tantos ex-ministros queimados em lume brando durante anos na opinião pública, acabarem totalmente ilibados de um processo judicial e onde nem sequer foram ouvidos. Ignorou-se o processo que ditou a queda deste governo e as próprias trapalhadas em que está metida a Procuradora-Geral da República por causa dele. Cedeu-se perante a sua postura de inimputável que levou a que passados quase 5 meses, nenhum dos envolvidos do governo tivesse sequer sido chamado. Estamos nisto. Outra vez.

Fizemos o jogo da Mariana Mortágua e do André Ventura que querem amarrar os políticos a uma espécie de fascismo, comunismo ou trotskismo onde não conversam, almoçam ou fazem pontes com empresários. Ou onde são meros bonecos, até que o Chega chegue ao poder e seja o mais corrupto e perigoso deles todos. É sempre assim quando a extrema-direita vai para o governo.

Tivemos a sorte de ser um dos últimos países europeus em que o novo fenómeno da direita radical aterrou. Larguemos a lengalenga de que tudo começa e acaba na resolução do descontentamento. Não é assim e isso nem sequer existe assim.

Comecem pelo que custa mais. Desmantelar e reconfigurar todos os setores onde a nossa já está infiltrada, corroendo o próprio país. Verão que tudo o resto virá por acréscimo.

O contrário é deixarmos de ser o que somos.

Sim, o meu próximo artigo é exatamente apontar para onde estamos. Em termos sociais, económicos, de segurança como um dos países mais atrativos do mundo, de investimento público, atração de investimento estrangeiro e até de economia das famílias. Para poder voltar aos mesmos indicadores depois da descida vertiginosa a que vamos assistir.

Sempre em conta-corrente a esta ideia do Chega do “descontentamento”. Uma caracterização que tanto pode fazer rir, como chorar, tal é a ingenuidade que carrega.

QOSHE - A ilusão do Chega do “descontentamento” - Gonçalo Ribeiro Telles
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A ilusão do Chega do “descontentamento”

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12.03.2024

Muitos dos abstencionistas que votaram domingo no Chega eram-no há vinte anos ou mais. Grande parte da raiz desse partido advém de dois lugares para os quais se olha menos nos media:

1) O de um movimento populista, extremado na Europa que surge solidificado num grande e concertado bloco em que uns ou outros se financiam e apoiam. André Ventura não é uma personagem menor neste enquadramento. Líder hábil, tem o apoio e está bem alavancado por todas as personagens relevantes globalmente aqui.

2) O outro lugar que vai ao encontro dos tais antigos abstencionistas portugueses que referenciei no início do artigo é o dos saudosistas do antigo regime, sem qualquer apego à democracia por melhores ou piores soluções que esta lhes dê. Durante anos, estiveram à margem do debate político exatamente por isso e naturalmente que não se trata de um fenómeno exclusivamente português. Pelo contrário. Por essa Europa, existem ligações históricas ao fascismo, com mais ou menos narrativas falsas marteladas hoje e através de todos os mecanismos subvertidos numa nova extrema-direita muito bem financiada. É por isso normal o porto seguro em personalidades históricas como Salazar. Passa de geração em geração e cria-se uma espécie de nostalgia de um país que só existiu para a realidade deles.

André Ventura........

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