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508.APRESENTAÇÃO CRÍTICA DE CHRÓNICAÇORES: UMA CIRCUM-NAVEGAÇÃO. VOL. I. UM VERBO A CONJUGAR: CIRCUM-NAVEGAR POR ROSÁRIO GIRÃO E MANUEL J SILVA

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18.04.2024

Chrys Chrystello

Crónica 508 Rosário Girão aprecia ChrónicAçores vol. 2, 2011


Crónica 508 Rosário Girão aprecia ChrónicAçores vol. 2, 2011


APRESENTAÇÃO CRÍTICA DE CHRÓNICAÇORES: UMA CIRCUM-NAVEGAÇÃO. VOL. I. UM VERBO A CONJUGAR: CIRCUM-NAVEGAR POR ROSÁRIO GIRÃO E MANUEL J SILVA

Absque sudore et labore nullum opus perfectum est


Se há livros que devem ser lidos e cuja releitura prodigaliza novos rumos hermenêuticos, defluindo de um redivivo “prazer do texto” que incessantemente se descobre, outros há que merecem ser estudados com denodo, como é o caso desta obra de J. Chrys Chrystello, cujo nome e sobrenome têm vindo a ser adulterados, “desde Chrysler a Christofle, Castelo, Crastelo, Perestrelo ou Costello consoante os países.” (2009: 192). Exemplo emblemático de multiculturalismo (de que CC é “confesso defensor”), claramente introduzido e firmado, em termos óbvios, pelo conceito de “circum-navegação”, ChrónicAçores é, verdade seja dita, uma obra plural e total, protagonizada por JC, alterónimo, quiçá, de CC - sua mulher, HC, “comentara, um dia, que o grande problema existencial de JC era saber qual dos dois venceria o duelo, ele ou o seu alter ego.” (2009: 179) -, sempiterno viajante, por terras reais e reinos imaginários, e “castelão” ‘atrelado’ ao seu teclado informático, para o qual vai ditando os seus périplos à medida que, pela revivescência, se vai contando...

A estrutura circular da obra em exegese é, a este respeito, dilucidativa: abalando dos Açores, onde se encontra radicado, JC ruma até ao Oriente, não sem convidar para tal romagem o seu fiel leitor, ambos findando a epopeia marítima - “De Timor a Macau, Austrália, Brasil, Bragança até aos Açores” - no Arquipélago de origem.

Do Ocidente para o Oriente e do Oriente mítico para o Ocidente gerador de mitos, é-nos dado deparar com um JC jornalista e “last but not least” e escritor. A trajetória em pauta é forçosamente escandida pela alternância de tempos verbais - o presente, o perfeito e o imperfeito -, reenviando para um antes e para um depois, delineando um ontem e um hoje, ora recuando ora avançando, socorrendo-se de analepses esclarecedoras e de almejadas prolepses (no que respeita ao leitor...) e configurando um vaivém temporal dinamicamente responsável pelo retrato sociopolítico de Portugal ao longo de, grosso modo, sessenta anos - “Voltemos de novo à matança do porco” (2009: 108); “Bom, voltando aos Açores, [...]” (2009: 111); “Voltando à Rádio Renascença e ao automobilismo” (2009: 244); “Voltando atrás no tempo [...]” (2009: 250); “[...] como veremos adiante [...]” (2009: 172). Fazendo jus ao rigor prescrito por todo e qualquer trabalho académico (mas que, nos dias de hoje, nem todo e qualquer trabalho académico detém...), valendo-se de uma ampla bibliografia caraterizadora da tese universitária e do ensaio científico, consultando uma documentação genuína, não raro de difícil acesso, destinada a evitar o papagueamento de falsas verdades geracionalmente repetidas e cristalizadas em dogmas indefetíveis, JC observa “por entre as espirais do fumo dos cigarros” (2009: 103), disseca, analisa, comenta e arquiva não só o universo circundante, mas também o seu ego, que tem a generosidade de desnudar:

“A vida passada só fazia sentido para o ego que fora, mas já não era.” (2009: 20).

“Por ser quem fora se tornara naquilo que hoje era.” (2009: 45).

Paulatinamente vai esboçando o seu autorretrato de homem ateu e não agnóstico (conquanto nostálgico da fé dos tempos idos), obcecado pelo “politicamente (in)correto”, imbuído de desencanto - proveniente da quebra de ilusões e de rejeições sucessivas - perante a vida, propugnador de uma igualdade sem discriminações, inimigo de fundamentalismos ditatoriais e cumpridor escrupuloso de todas as leis. Justiceiro tenaz e inconformista ferrenho, “hedonista perfeito em perfeito levante exótico” (2009: 380), fumador, carnívoro (2009: 132) e exterminador de formigas (2009: 202), JC, poeta sonhador (2009: 237), anda “ao contrário de todo o mundo, como os caranguejos, mas em vez de andar para trás andava sempre para a frente, adiantado em relação aos restantes.” (2009: 125). Afinal, “JC é quem continua errado e não o mundo.” (2009: 209).

…, Há que destacar os capítulos consagrados à História de Timor, diacronicamente narrada e vastamente comprovada, que já havia sido, em certa medida, objeto parcial do ensaio publicado pelo Autor em 1999 e intitulado Timor Leste O Dossiê Secreto 1973-1975. Retrocedendo, na sua crítica arguta, aos métodos de Celestino da Silva, que tirava estrategicamente partido das rivalidades entre as diversas tribos, com vista à sua ulterior dominação, e que sabiamente recorria ao serviço doméstico de espionagem facultado pelas mulheres e amantes indígenas, revisitando a obra meritória de Filomeno da Câmara, na peugada do seu antecessor, e analisando o ensaio de Teófilo Duarte, suscetível de proporcionar um sólido conhecimento dos mais marcantes eventos novecentistas, vê-se o leitor confrontado - “Nem as elites nem os jovens alguma vez leram estes episódios que bem retratam a grande nação de tribos timorenses.” (2009: 410) - com a descrição da Ilha em forma de crocodilo - contada pelo poeta Fernando Sylvan (2009: 292) -, com a autodeterminação espoletada pela Revolução dos Cravos, com a criação dos principais partidos políticos de Timor, com a sempiterna oscilação entre a Indonésia, a Austrália e Portugal no papel de países colonizadores e neocolonizadores, com a independência encarada como horizonte longínquo a atingir, com as fragilizadas condições de vida dos Timorenses, advindas do racionamento dos géneros essenciais, com as dificuldades de comunicação fomentadoras do isolamento, da ignorância e da despolitização, com a inexistência de sistemas rodoviários, marítimos e aéreos, com o deficiente aproveitamento de plantações insulares (sobretudo a do café, verdadeira fonte de riqueza) e com a questão da lusofonia ou, por outras palavras, da preservação da língua e da cultura portuguesas.

Bem interessantes, a todos os níveis, se revelam quer os comentários políticos, breves e incisivos, com que JC brinda certas notícias publicadas no Portugal Diário e na Fonte Lusa de 21 de junho de 2006, ou no Blogue Causa Nossa e no jornal Público de 25 de junho do mesmo ano, quer o balanço final da controversa situação política timorense, retoricamente martelado pela quádrupla recorrência do sintagma verbal “Foi pena...”: “Foi pena que os líderes […] pensassem serem apenas umas pequenas ondas […] Foi pena que […] não se tivessem dedicado a emprestar pás e enxadas para ocupar os guerrilheiros desocupados […] Foi pena que […] não tivessem ‘nonas’ (amantes) para lhes contar o que se passava nos quatro cantos de Timor. Foi pena que tenham sido apanhados desprevenidos por esta insurreição tão bem orquestrada pela Austrália, […]” (2009: 471).

A tradição versus a inovação ou a regressão contra o progresso (e não serão as primeiras privilegiadas?) não escapam, numa perspetiva multifacetada, ao monóculo de lança em riste de JC, para o qual “a realidade já ultrapassou a ficção há muito.” (2009: 213): assim é que desfilam, em quadros visuais reforçados pela visualidade da escrita, a morosidade das viagens efetuadas entre Trás-os-Montes e o Porto (2009:31), bem como a celeridade, em termos relativos, dos antigos comboios “Foguetes”, ligando o Porto a Lisboa; a tradição de as famílias transmontanas, como a de sua Mãe, irem a banhos para a Póvoa, enquanto sua Avó e seu Pai elegiam, como estâncias de vilegiatura, as praias nortenhas da moda, como a Foz, Matosinhos, Miramar, Granja e, posteriormente, Espinho (2009: 45); a saudação amistosa dos ‘acinzentados’ cantoneiros que, no antigamente, desempeciam as bermas das estradas de uma indesejada vegetação invasora (2009: 97-98); o romantismo emanado pelos bilhetinhos sentimentais (2009: 121) que o jovem Romeu ou Lovelace endereçava às ‘encarceradas’ donzelas dos seus sonhos (batizada de Tina, neste caso concreto...), muito provavelmente tomado de empréstimo ao camiliano Amor de Perdição e Amor de Salvação ou, então, ao idealismo rural de Júlio Dinis que A Morgadinha dos Canaviais e As Pupilas do Senhor Reitor revelam à saciedade; a solicitude ancilar ou a prestabilidade das serventes ou sopeiras que, embora fardadas, se integravam naturalmente na família; a designação da bica - “Pavoni” e “Cimbalino” - no decénio de 60, que, metonimicamente, reenviava para a marca da máquina de café expresso (2009: 103).

Nos antípodas do passado mítico irrompe o presente desmistificado - “mudam-se os tempos.” (2009: 227) -, alvo certeiro da sátira cáustica e da ironia corrosiva: os cantoneiros, abandonados, deixaram o palco continental, tendo sido votadas ao olvido as suas castiças cabanas, em virtude do desaparecimento da Junta Autónoma de Estradas que, apesar dos escolhos, lá ia cumprindo a sua missão (2009: 99); a terminologia simples de antanho ‘complexificou-se’ (como é sólito dizer atualmente...), a fim de contornar eventuais réstias de complexo conotadas com as profissões mais humildes (2009: 29-30); a linha do Tua, que ofertava uma paisagem de beleza ímpar, viu-se e vê-se seriamente ameaçada, a par dos “Foguetes”, entrementes sumidos, que “apodrecem em Elvas” (2009: 210) e tendem a ser substituídos por luzidios e frenéticos TGV; quanto à vida sã da aldeia, ela dá a sensação de haver sido marginalizada, e até petrificada, - em proveito do urbanismo - num museu envidraçado, passível de visita, qual fenómeno arqueológico, pelos jovens citadinos desconhecedores da rusticidade e do primitivismo: “O campo é bonito para se passear nas férias e levar lá os putos (como quem os levava dantes ao zoológico) [...] ” (2009: 211).

Sobrelevando a análise social, eis a História que fascina JC, “saudosista desses tempos de antanho a viver ancorado no futuro” (2009: 51-52), embora conhecendo de antemão a inviabilidade de alterar a visão estereotipada e convencional dos factos históricos. Nesta conjuntura, o mais insignificante caso de vida, o mais ínfimo detalhe social e a mais prosaica questão quotidiana não........

© Diário de Trás-os-Montes


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