"A questão sobre se e como lhe proporcionar meios de proteção não pode estar meramente preocupada com as ameaças à democracia, mas sim em torná-la mais resiliente contra tais ameaças e em convencer os próprios antidemocratas do valor da democracia e dos processos democráticos. Se a democracia precisa de proteção, então o primeiro passo é assegurar que os democratas reconhecem a importância, a valia e a necessidade de assim fazer.” (Tradução livre de Emily Salamanca, “Pruning of the People: Ostracism and the Transformation of the Political Space in Ancient Athens”, Philosophies, Princeton University, 2023, 5, p. 81).
O interesse deste artigo de Salamanca está no relacionamento que estabelece entre uma forma de segregação social, o ostracismo , enquanto ‘tática’ eficaz de influência sobre os indivíduos para conformar atitudes ‘desviantes’ e prevenir futuros ‘desvios’, e a democracia.
Remontando à Grécia Antiga, onde tal prática funcionava como instrumento de preservação da democracia ateniense das ameaças internas, exilando os seus protagonistas pelo período necessário à respetiva ‘reeducação’, a autora conclui que democracia não pode dispensar certos “softer elements” de autodefesa, como a educação cívica ou a própria autorreforma.
É certo que nem todo o ostracismo tem caráter punitivo (há taxonomias para a sua classificação) como o ‘naturalizado’ ostracismo dos sistemas de estratificação social por castas. Por outro lado, nem todo o ostracismo punitivo (comum desde a antiguidade até aos nossos dias) tem aquela vocação regeneradora do tecido social.
Nas sociedades tradicionais, por exemplo, onde não existia a noção de indivíduo (muito menos o nosso disruptivo culto da individualidade) e a pessoa só adquiria sentido (humanidade) no contexto do próprio grupo social, a expulsão era a punição máxima, por excelência.
Porém, no que aqui particularmente nos interessa, a noção de que uma antiga forma de proteção se pode voltar contra a democracia, na medida em que também precisa de se defender pelo procedimento, é fundamental. Defesa que a torne bem mais resiliente e capaz, não direi de “convencer antidemocratas”, mas de se prevenir contra o (des)convencimento de todos os que a experimentam e com ela se incompatibilizam por motivos de exclusão.
Desde logo, dos meios indispensáveis ao desempenho da cidadania, já que, ao contrário do que sugerem certos arautos da liberdade, esta não só carece de condições para o seu exercício, como é pela assumida ignorância disso que mais se impede que se venha a exercer. A começar pela perceção de que, em democracia, nos caberá alguma capacidade de opção sobre as coisas do nosso quotidiano.
Se não, há de sempre restar este generalizado recurso àquilo a que, em português, uns chamam cunha e outros “pistolão”.

1.O termo ostracismo, que se refere a várias formas de exclusão dos indivíduos do seu contexto social, parece derivar da especial capacidade das ostras em segregar corpos estranhos.

QOSHE - Crónica: Debita nostra CCXXIV - Luís Costa
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Crónica: Debita nostra CCXXIV

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14.12.2023

"A questão sobre se e como lhe proporcionar meios de proteção não pode estar meramente preocupada com as ameaças à democracia, mas sim em torná-la mais resiliente contra tais ameaças e em convencer os próprios antidemocratas do valor da democracia e dos processos democráticos. Se a democracia precisa de proteção, então o primeiro passo é assegurar que os democratas reconhecem a importância, a valia e a necessidade de assim fazer.” (Tradução livre de Emily Salamanca, “Pruning of the People: Ostracism and the Transformation of the Political Space in Ancient Athens”, Philosophies, Princeton University, 2023, 5, p. 81).
O interesse deste artigo de Salamanca está no relacionamento que estabelece entre uma forma de segregação social, o ostracismo........

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